A impressão é que a Marvel demorou para descobrir o que fazer com o Gavião Arqueiro no cinema. Sua introdução no MCU foi uma brevíssima aparição em Thor (2011), cuja única justificativa era antecipar a futura inclusão na equipe dos maiores heróis da Terra. Quando Os Vingadores (2012) finalmente estreou, porém, o que se viu foi um Clint Barton praticamente reduzido a elemento da trama.
Foi somente a partir de Vingadores: Era de Ultron (2015) que o personagem ganhou tridimensionalidade e traços distintivos: o homem ordinário, deslocado em meio a seres poderosos; o sujeito devotado à família; o cínico durão que, vez ou outra, deixa o humor transparecer. Essa personalidade passou a defini-lo, sendo explorada e aprofundada nas iterações seguintes. É o caso da nova série Gavião Arqueiro, cujos dois primeiros episódios chegam agora ao Disney+.
[Atenção: o texto contém spoilers dos dois primeiros episódios de Gavião Arqueiro]
A essa altura, Jeremy Renner está mais do que à vontade na pele de Clint, que reencontramos após os eventos de Vingadores: Ultimato (2019). Ele está em Nova Iorque, a fim de recuperar um pouco do tempo perdido com os filhos, Cooper (Ben Sakamoto), Lila (Ava Russo) e Nate (Cade Woodward), enquanto Laura (Linda Cardellini) permanece no rancho da família. em Missouri, cuidando dos preparativos para o Natal.
Entre jantares e peças da Broadway – o trecho do musical Rogers é um dos momentos mais divertidos de todo MCU, um comentário satírico a si próprio e à indústria do entretenimento –, ele ainda tenta lidar com a perda da amiga Natasha Romanoff, o novo status de celebridade e o preço que suas aventuras começam a cobrar sobre o corpo (Clint vem enfrentando problemas de audição). Os planos de voltar para casa com as crianças são ameaçados por uma notícia no telejornal: a aparição pública de alguém vestido como Ronin, o alter ego que ele momentaneamente assumiu durante Ultimato.
Quando a imagem do justiceiro fantasiado surge na telinha, o espectador já sabe que se trata de Kate Bishop (Hailee Steinfeld), apresentada como a verdadeira protagonista. Afinal, é nela que se concentra o enredo. Tanto que o primeiro episódio, Nunca conheça seus heróis, abre com um flashback em 2012, em meio ao que parece mais um dia normal na vida da família Bishop (apesar dos problemas financeiros sugeridos por uma discussão). A rotina é bruscamente interrompida pela invasão dos chitauri – e aqui, fica evidente que o diretor Rhys Thomas possui competência técnica, porém, faz escolhas narrativas questionáveis.
O bom plano-sequência, transmitindo toda a tensão da pequena Kate diante do que está ocorrendo à sua volta, é interrompido por cortes nada originais, que reduzem o efeito obtido até ali e o impacto da cena que deveria ser o ápice daquele trecho: a visão heroica de um homem solitário no topo de um prédio, alvejando alienígenas com suas flechas. Assim, o que poderia ser um marcante retrato da nascente admiração da criança pelo Gavião Arqueiro acaba sendo pouco mais do que mera alusão a Os Vingadores.
Resgatada pela mãe, Eleanor (Vera Farmiga), Kate logo descobre que o pai morreu durante o ataque – e decide que precisa treinar e se preparar para outras situações como aquela. Já adulta, ela volta da faculdade para passar o final do ano em Nova Iorque. Lá, é surpreendida pela notícia de que a mãe não só iniciou um romance como está noiva de um conhecido da família, Jack Duquesne (Tony Dalton).
Em grande parte bem escrito, o roteiro de Jonathan Igla, criador da série, derrapa em certos momentos, como a sucessão de coincidências que conduzem a um ponto-chave no enredo. Durante um evento beneficente em um hotel, Kate está no local e instante certos para ouvir uma discussão em tom ameaçador entre sua mãe e Armand (Simon Callow), tio de Jack; está com a roupa certa para conseguir se infiltrar em um leilão secreto; e, de novo, está no local e instante certos para, primeiro, antever que o evento está prestes a ser invadido por criminosos e, segundo, para roubar o traje do Ronin, um dos itens leiloados (o outro é a espada, esta subtraída por Jack).
Depois de fugir do hotel com a ajuda de um golden retriever caolho (por enquanto anônimo, mas que os fãs dos quadrinhos já sabem se tratar de Lucky, mais conhecido como Pizza Dog), Kate vai até o apartamento de Armand para confrontá-lo, mas o encontra assassinado. Saindo de lá, é encurralada pelos mesmos bandidos que invadiram o leilão. Ela é salva por Clint.
O encontro dos dois confirma que, além da força dos personagens isoladamente (é preciso destacar que o talento e carisma de Steinfeld são suficientes para tornar Kate cativante logo nos primeiros minutos em cena), a química entre os protagonistas é a maior virtude da série.

Por sinal, o segundo episódio, Esconde-esconde, se concentra justamente na dinâmica de Clint como protetor e mentor relutante e Kate como pupila ávida por aprendizado e uma figura paterna. Enquanto se abrigam no apartamento da jovem, o Gavião explica que o uniforme do Ronin é um chamariz de perigo, já que o justiceiro fez muitos inimigos – incluindo a Gangue do Agasalho, cujos integrantes eles acabaram de despistar. Os bandidos, porém, já estavam seguindo Kate e chegam ao local, incendiando-o com coquetéis molotov, o que força a dupla a fugir novamente.
Os dois têm, então, um bem construído diálogo, em que a jovem afirma que o Gavião Arqueiro tem um problema de branding. É uma fala reveladora em diferentes níveis. Do ponto de vista narrativo, reforça o tema central: o herói que não tem consciência de que, mais do que proteger, seu papel é também inspirar. Do ponto de vista metalinguístico, evidencia que a série usa o ponto de vista de Kate para valorizar o mais subestimado dos Vingadores.
Após essa interação, a dupla se separa momentaneamente. O Gavião parte em busca do uniforme, furtado por um bombeiro, membro de um grupo de LARP (live action role-playing). De certo modo, a cômica sequência, em que o herói se vê forçado a tomar parte na encenação, soa como comentário sobre certos aspectos da cultura fandom.
Depois de recuperar o traje, Clint telefona para Laura e conta seu plano de se deixar ser apanhado pela Gangue do Agasalho a fim de obter mais informações (a conversa do casal, mostrando que a esposa está familiarizada com os oponentes e as estratégias do marido, ajuda a aprofundar ainda mais o personagem).
Enquanto isso, Kate suspeita que Jack possa estar envolvido com a morte do tio. Durante um jantar na casa da mãe, desafia o futuro padrasto para um duelo de esgrima, no qual o força a revelar a real extensão de sua habilidade com a espada. Mas o que realmente faz soar o alarme é o doce que Jack oferece a ela – o mesmo que havia visto na casa de Armand. A garota sai às pressas e liga para Clint, apenas para descobrir que ele foi capturado. Sua tentativa de resgate é frustrada e ela acaba sendo pega também.
O episódio termina com a revelação da pessoa que aparentemente está no comando da Gangue. Embora seu nome não seja mencionado, trata-se de Maya Lopez (Alaqua Cox), a Eco, que em breve vai ganhar sua própria série.
Uma das principais perguntas que fica para os quatro próximos capítulos é se Jack se confirmará como o antagonista. A julgar pelo nome e pela predileção por espadas, ele é uma versão de Jacques Duquesne, o Espadachim – nas HQs, é um antigo mentor de Clint e vilão posteriormente tornado herói. Tudo leva a crer que, na série, ele é do time dos bandidos (inclusive a caracterização quase caricata de Tony Dalton).
Todavia, isso pode ser uma pista falsa plantada pelo roteiro para esconder um vilão mais surpreendente, como a própria mãe da protagonista. Ou, quem sabe, o Rei do Crime – uma hipótese improvável, mas não impossível, já que, nos quadrinhos, Eco é filha adotiva de Wilson Fisk.
A outra grande pergunta é como será a participação de Yelena Belova (Florence Pugh), confirmada na série. A cena pós-créditos em Viúva Negra (2021) revelou que, manipulada pela Condessa Valentina Allegra de Fontaine (Julia Louis-Dreyfus), Yelena acredita que Clint foi responsável pela morte de Natasha. A vingança, portanto, deve ser a motivação; resta como saber de que maneira isso irá se encaixar no enredo.