De todo o grande elenco de O Esquadrão Suicida (2021), o diretor e roteirista James Gunn escolheu justamente o Pacificador para dar uma série solo. Essa pareceu uma escolha no mínimo esquisita, especialmente depois dos caminhos que o personagem de John Cena tomou no filme.
Novo lançamento do HBO Max, a série Peacemaker faz da dúvida de como a DC e o cineasta pretendem levar adiante uma persona controversa sua razão de ser, criando uma jornada épica de redenção regada a hard rock, violência, humor absurdo e todas as esquisitices do universo dos super-heróis.
[Cuidado com spoilers dos três primeiros episódios de Peacemaker]
Confirmando a deixa da segunda cena pós-créditos de O Esquadrão Suicida, Peacemaker começa pouco após os eventos do filme. Ou seja, após Christopher Smith matar um herói pessoal e quase assassinar outros membros da Força-Tarefa X para esconder um segredo sujo dos Estados Unidos. Dado como morto após ser baleado na garganta pelo Sanguinário (Idris Elba), ele acorda em um hospital acreditando ter se livrado da prisão após cumprir a desastrosa missão em Corto Maltese. Infelizmente (para ele), as coisas não funcionam bem assim.
Ao receber alta, Smith corre para casa o mais rápido possível tentando deixar para trás as perigosas missões confidenciais. Porém, uma nova equipe montada pessoalmente por Amanda Waller (Viola Davis) chega até ele para cobrar o restante da dívida em mais uma tarefa violenta que busca salvar o mundo em segredo.
A nova missão coloca o Pacificador para trabalhar com velhos conhecidos – Emilia Harcourt (Jennifer Holland) e John Economos (Steve Agee) – e novos nomes, como o misterioso Clemson Murn (Chukwudi Iwuji) e Leota Adebayo (Danielle Brooks), uma ótima espiã que parece ter o coração mole demais para uma operação desse porte. Utilizando a bomba implantada no Pacificador como barganha, eles contatam o vigilante para que ele seja o braço forte do misterioso “Projeto Borboleta” – uma missão tão secreta que leva três episódios para que respostas sejam entregues ao protagonista e ao público.
Com uma nova missão definida, o Peacemaker passa a intercalar entre as vidas “profissional” e pessoal de Christopher Smith. Se na primeira ele é uma máquina de matar burra e hipócrita, como bem visto em O Esquadrão Suicida, a segunda parece querer explicar por que ele acabou desse jeito, o que nos leva diretamente à controversa figura do pai.
Se o filme plantou uma semente de que o personagem tem problemas graves na relação com o próprio genitor, os primeiros capítulos da série ajudam a entender quais são. Interpretado pelo brilhante ator Robert Patrick (O Exterminador do Futuro 2), August Smith é um homem abertamente racista e preconceituoso que criou o filho para ser a máquina de matar mais durona possível.
A rápida e desastrosa interação entre os dois no primeiro capítulo deixa claro como Christopher se transformou uma máquina de matar cujo lema é “matar qualquer homem, mulher ou criança para garantir a paz”. Essa humanização tem a clara meta de redimir o personagem, que deixou uma primeira impressão bastante negativa no filme de 2021.
Má impressão essa claramente intencional, já que James Gunn utilizou o personagem como veículo da grande crítica à política intervencionista dos Estados Unidos. Esse fator crítico, aliás, volta a aparecer em Peacemaker, que não fez a menor questão de ser sutil ao transformar o pai do personagem em uma versão do Dragão Branco, alcunha utilizada por diversos vilões supremacistas nas HQs da DC.
Não que essa conexão seja inédita da série, já que nos quadrinhos o pai de Smith foi comandante de um campo de concentração e aparecia para o filho como uma alucinação vestindo a farda nazista. Porém, ao invés de jogar seguro e colocar um grande vilão na longínqua Segunda Guerra Mundial, a série o apresenta no contexto atual em que o extremismo tomou conta da política norte-americana (e mundial, por que não?).
Mas o pai do Pacificador ficará para o futuro, já que a própria série se despede dele sendo adorado por supremacistas na cadeia. Enquanto isso o Pacificador estava cuidando de problemas maiores na casa de um senador da república. Após tomar uma bela surra do obscuro vilão Mestre Judoca, o herói e seu inusitado parceiro Vigilante (Freddie Stroma) se unem aos espiões para derrubar um político ligado ao tal “Projeto Borboleta”.
Apesar de não sabermos exatamente do que se trata, essa nova missão joga o Pacificador direto no lado mais bizarro do universo dos super-heróis. Apesar de inicialmente parecer uma série mais “pé no chão”, a apresentação de alienígenas com formato de inseto que controlam seres humanos nos lembra que esse ainda é o Universo DC povoado por alienígenas, semideuses e estrelas-do-mar gigantescas.
Nesse sentido, o texto também vai fazer a alegria dos fãs da editora ao metralhar referências que vão desde o universo cinematográfico até os cantos mais obscuros das HQs. James Gunn sabe exatamente como os leitores ficarão felizes com uma mera citação ao Bat-Mirim, mas não torna esse o centro da história.
O mesmo pode ser dito sobre o fator violência da produção, que aparece em doses cavalares como a de O Esquadrão Suicida. Porém, mais do que no filme, aqui o recurso é usado com mais autoconsciência ao mostrar como a exposição indiscriminada a esse tipo de conteúdo sem um mínimo de responsabilidade pode tornar os jovens tão alienados e patéticos quanto o Vigilante – uma clara paródia aos fanboys que adorariam vestir uma fantasia e bancar o Justiceiro por aí.
Essa sátira complementa bem o humor quase mórbido que permeia a produção. Nesse sentido a presença de Adebayo e da própria águia Eagly servem quase como um respiro por trazerem um tipo diferente de riso à mesa, que ao mesmo tempo complementa e quebra o azedume absurdista das situações mostradas na produção.
Com um começo intenso e cheio da ação empolgada e diálogos afiados que se tornaram assinatura de James Gunn, Peacemaker tem tudo para ganhar um espacinho no coração dos fãs. Sem vergonha do lado mais esquisito e fantasioso dos super-heróis, a produção conta com um texto afiado e um elenco competente o suficiente para inaugurar uma nova era de séries da DC.