Aviso: contém spoilers das três temporadas, inclusive o final!
Hoje menos celebrado do que merece, o cartunista norte-americano Rube Goldberg se tornou um artista de renome na primeira metade do século 20. Seu maior legado consiste em desenhos de máquinas nas quais uma extensa sequência de cordas, roldanas, rampas e outros dispositivos vão sendo acionados em cadeia até, no fim, executar uma tarefa tão mundana como usar o guardanapo.
O humor contido na ideia do overengineering (ou da complexidade excessiva) para alcançar objetivos simples e o fascínio diante da criatividade necessária para imaginá-las garantiram a tais traquitanas um lugar no imaginário popular. Apropriadamente, elas ficaram conhecidas como máquinas de Rube Goldberg, dando as caras nos desenhos de Tom & Jerry, na abertura de De Volta Para o Futuro (1985) e no videoclipe da banda OK Go, além de ter virado tema de canal no YouTube.
Existe outro tipo de construção que, embora guarde semelhanças nos aspectos visual e conceitual, tem propósito e efeito diferentes. Retornaremos a isso mais adiante.
Cheia de peças e engrenagens, como se fosse uma dessas engenhocas, Dark é sem dúvida uma das obras mais intrincadas dos últimos anos. A série alemã, criada e produzida pela roteirista Jantje Friese e pelo diretor Baran bo Odar para a Netflix, se propõe a oferecer uma narrativa original na ficção científica. Para isso, aposta em formato e conteúdo desafiadores (ao menos para os padrões atuais), tangenciando fontes acadêmicas, como estudos em mecânica quântica e Física de partículas.
Ainda assim, não deixa de dialogar com as grandes referências do gênero. Na literatura, a exemplo de A Máquina do Tempo, do escritor inglês H. G. Wells — as primeiras iniciais do relojoeiro H. G. Tannhaus são evidente alusão ao autor do livro publicado em 1895.
No cinema, caso do supracitado De Volta Para o Futuro — 5 de novembro, a data em 1955 para a qual Marty McFly viaja no filme de Robert Zemeckis, é também o dia em que o pequeno Mikkel chega, em 1986, após sair da caverna (S01E02). Ou, de maneira mais explícita: “nada de DeLorean, nada de assobio ou vapor; a primeira máquina do tempo é um bunker com quatro paredes”, diz o Estranho a Jonas (S01E10).
O enredo sobre a estranha série de eventos na cidade de Winden, desencadeada pelo suicídio do pai do protagonista e o desaparecimento de um adolescente, trata de viagem no tempo, multiversos e discussões filosóficas, bem como explora signos capazes de acrescentar novas camadas de interpretação. Tudo isso em uma estrutura não linear, que, em grande parte, escapa do didatismo, exigindo do espectador um nível de concentração pouco habitual nestes tempos de hiperatividade e déficit de atenção.
Desse modo, Dark abre um leque considerável de opções de abordagem que uma análise pode adotar — é possível, por exemplo, se debruçar sobre o emaranhado de relações familiares entre os personagens ao longo das gerações ou tentar destrinchar a cronologia dos eventos nas diferentes dimensões. Aqui, a fim de manter o foco e, dentro do possível, a concisão, vamos nos ater a algumas das questões que têm maior impacto sobre a narrativa.
A base científica
Um físico torcerá o nariz para a noção de que a “partícula de Deus” (a começar pelo uso dessa expressão popular, uma vez que a nomenclatura correta é bóson de Higgs) seja retratada como uma gosma preta surgida a partir de um tonel de material radioativo em uma usina nuclear (S02E08).
A maioria esmagadora do público, porém, simplesmente registrará o fato de já ter ouvido tal expressão anteriormente e a aceitará como explicação “científica” dentro do contexto da série. Nela, portanto, o bóson de Higgs nada mais é do que um MacGuffin (um elemento que faz a trama avançar, mas não tem importância em si) com disfarce acadêmico — e, neste caso, o emprego de seu apelido “divino” em vez do nome oficial se justifica, pois também ajuda a estabelecer conexão com o tópico da simbologia mitológica, a ser abordado mais à frente.
Não há demérito em apresentar uma versão superficial (ou parcialmente distorcida) de um conceito científico. A ficção tem feito isso há décadas, sendo raras as obras do gênero que conseguem se aprofundar sem cair no excesso de exposição ou no pedantismo. E embora em algumas ocasiões utilize a ciência basicamente como verniz intelectual, Dark é bem-sucedida ao fazer dela, se não a base, ao menos a saída para algumas armadilhas de roteiro.
Uma das principais é a aparente contradição entre a missão de Jonas e Martha — evitar o apocalipse — e a impossibilidade de mudança, expressa com maior clareza quando o jovem Hanno/Noah impede o suicídio do protagonista e demonstra que o evento é simplesmente inviável (S03E07): “Você não pode tirar a própria vida porque o seu eu mais velho já existe. O tempo não permite”.
A fala ecoa um artigo intitulado The paradoxes of time travel (Os paradoxos da viagem no tempo), publicado no periódico American Philosophical Quarterly em abril de 1976. No texto, o filósofo norte-americano David Lewis argumenta que uma mudança é “uma diferença qualitativa entre partes de um todo persistente”, que se estende ao longo do tempo. Assim, elementos que não podem ser divididos em partes, como numerais ou momentos (pontos singulares no tempo), não podem ser alterados.
O pensador então traça o seguinte exemplo: Tim odeia o avô, que fez fortuna no comércio de armas, possibilitando ao neto usar o dinheiro para construir uma máquina do tempo. Tim então volta ao ano de 1921 para matar o avô; ele comprou um rifle, treinou, memorizou a rotina do alvo, encontrou o dia, hora e local perfeitos para executar seu plano e dispõe de todas as condições para fazê-lo.
Todavia, afirma Lewis, “Tim não pode matar o avô. O avô viveu, então matá-lo seria mudar o passado. Mas os eventos de um momento no passado não são divisíveis em partes temporais, portanto, não podem ser mudados. Ou os eventos de 1921 incluem o assassinato do avô de Tim ou não incluem”.
Apenas no último parágrafo o filósofo admite que o assassinato poderia ocorrer em um mundo em que o espaço-tempo se ramifica e “os ramos são separados, não no espaço, não no tempo, mas de algum outro jeito”.
A ideia é expandida no livro On the plurality of worlds (Sobre a pluralidade de mundos), publicado dez anos depois (ou seja, curiosamente, em 1986...), em que Lewis teoriza sobre a coexistência de múltiplos universos paralelos e independentes, nos quais os acontecimentos de um não têm influência sobre os outros. Tomada superficialmente, essa concepção pode ajudar a embasar a solução proposta na temporada final da série: alterações nos mundos alternativos não surtem efeito; a única saída é mudar o universo que deu origem às ramificações no espaço-tempo (S03E08).
A simbologia e a filosofia
Os realizadores de Dark não escondem sua predileção por temas mitológicos. A fábula grega de Ariadne, a princesa que se apaixona por Teseu e o ajuda a derrotar o minotauro, presenteando-o com uma espada e um novelo (assim como a metáfora do fio, representando o guia para sair do labirinto e o entrelaçamento do destino dos dois personagens), é aludida várias vezes. Em especial, na encenação da peça teatral (S01E06), em que o monólogo de Martha ilustra sua relação com Jonas até ali e antecipa o que está por vir.
Mas a maior fonte de referências é, sem dúvida, a tradição judaico-cristã, que permeia praticamente tudo o que diz respeito ao par central, começando pelos nomes, bíblicos, como os de outros (Noah, Mikkel/Michael, Hannah, Peter…). E ao colocá-los como os futuros Adam e Eva, o enredo passa a explorar a noção do pecado original. Assim como o casal bíblico, que comeu o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal e foi expulso do paraíso, transmitindo a culpa a seus descendentes (a humanidade toda), também Jonas e Martha, após a obtenção do conhecimento, são arremessados em suas jornadas para a ruína, trazendo repercussões negativas para todos com que têm laço familiar ou afetivo.
O dogma cristão da queda do homem, com o inerente questionamento acerca da possibilidade de uma escolha real entre bem e mal diante do chamado desígnio divino, coloca mais uma vez em pauta o conflito entre livre arbítrio e determinismo que a série aborda o tempo todo.
A citação de Arthur Schopenhauer — “O homem é livre para fazer o que quer, mas não para querer o que quer” (S03E01) — e as constantes menções a um ciclo eterno, imutável parecem sugerir que os autores tomam partido do pensador alemão, cuja obra pessimista (em termos filosóficos) aponta para a rejeição do livre arbítrio.
Em seu ensaio Ueber die Freiheit des menschlichen Willens (Sobre a liberdade da vontade humana), apresentado em 1839, Schopenhauer propõe, com sarcasmo: “Vamos imaginar um homem que, parado na rua, diz a si mesmo: ‘São 6 horas da tarde, o expediente terminou. Agora posso caminhar ou ir para o clube; posso também subir na torre para ver o pôr do sol; posso ir ao teatro; posso visitar este ou aquele amigo; sem dúvida, posso correr pelo portão mundo afora e nunca voltar. Tudo isso somente a mim cabe decidir, nisto tenho completa liberdade. Mas não deverei fazer nenhum dessas coisas agora, pois, com meu livre arbítrio, voltarei para casa, para minha esposa’."
E continua "Isso é exatamente o mesmo que a água dizer: ‘Eu posso produzir ondas altas (sim! No mar, durante uma tempestade), posso correr morro abaixo (sim! No leito do rio), posso mergulhar, espumando e jorrando (sim! Na cachoeira), posso subir livremente como um jato no ar (sim! Na fonte), posso, enfim, ferver e desaparecer (sim! Em determinada temperatura). Mas não farei nenhuma dessas coisas agora e voluntariamente permanecerei quieta e cristalina na lagoa’”.
Uma das conclusões a que o filósofo chega é que a única liberdade que o homem possui está ligada ao seu caráter, que o impele a agir de certa maneira diante de cada motivação. E, mais uma vez, tomando-se superficialmente o pensamento de Schopenhauer, pode-se argumentar que, frente à inviabilidade de fazer uma escolha verdadeiramente livre, é o caráter dos jovens Jonas e Martha naquele momento, antes de passarem por todo o processo que os transforma nos principais mantenedores do nó, o que os leva a se sacrificar para desfazê-lo.
O círculo fechado
Dark permite todas essas leituras. É bem verdade que, em sua ambição intelectual, os realizadores muitas vezes acabam priorizando o conceito em detrimento do desenvolvimento, inclusive no que se refere a personagens-chave.
Por exemplo, a terceira temporada se esforça para elevar Martha ao mesmo protagonismo de Jonas; no entanto, insiste em manter a perspectiva da contraparte masculina — ela mora na casa dele, veste a capa amarela dele, segue os passos dele, como se precisasse ocupar seu espaço —, o que infelizmente faz com que a jornada da garota funcione como mero apoio narrativo. De modo semelhante, Tannhaus serve apenas como ferramenta de exposição, explicando a ciência mais difícil; sua motivação, crucial para a conclusão da trama, só é devidamente aprofundada no último episódio.
O tempo que poderia ser dedicado à resolução desses problemas é gasto com subtramas que se revelam pouco relevantes e existem apenas para amarrar algumas pontas, casos da trajetória da medalha de São Cristóvão e da relação entre o investigador Clausen e Aleksander/Boris.
Sim, em certos aspectos, a série peca pela complexidade excessiva. Mas seria injusto compará-la a uma máquina de Rube Goldberg, na qual o exagero é proposital e imprescindível para se obter um efeito cômico. Dark se parece mais com outro tipo de construção similar, o chamado domino show: aquelas enormes estruturas em que fileiras de dominós vão caindo, formando ondas, cascatas e padrões no caminho. Você pode até não gostar do resultado final ou achar um trecho básico demais em relação a outro; mas não pode negar a engenhosidade e o cuidado meticuloso que a criação de algo assim requer — e, sejamos francos, dificilmente você conseguirá tirar os olhos até que a última peça tenha caído.