Com a tendência de adaptações de games ganhando força, os criadores passam a enfrentar desafios únicos para transpor jogos para outros meios. Por um lado, projetos que desviam muito do material-base podem frustrar uma grande parcela dos fãs, como é o caso de Halo. por outro, nem tudo pode ser adaptado com exatidão, quadro-a-quadro, como The Last of Us fez na HBO.
Jogos mais longos, ou que equilibram a narrativa dos desenvolvedores com as histórias criadas pelos jogadores, precisam de soluções especiais na hora de mudarem de meio, para não perderem o brilho ou ficarem insatisfatórios, sem saber se devem agradar a novatos ou veteranos. Até mesmo nomes como Hideo Kojima (Metal Gear Solid, Death Stranding) já assumiram que não é nada fácil a tarefa de “encaixar” jogatinas de 50 horas, ou até de centenas de horas e além, nas curtas durações de filmes e séries de TV.
Na série de Fallout, Jonathan Nolan achou uma boa alternativa para a questão: complementar, em vez de adaptar. O cocriador de Westworld e sua equipe buscam se inserir no universo já existente da franquia, o que resulta em um seriado autêntico à experiência de desbravar o mundo pós-apocalíptico dos jogos, mas que também prende o espectador pela trama, pelos personagens, pela ação e pelas reviravoltas que se esperam de uma boa série de TV.
Mundo em Chamas

Se a premissa soa simples, essa parece ser a ideia: criar algo que evoque clichês aventurescos, mas que seja funcional o bastante para se passar pela trama de um game inédito. Há um chamado para a aventura, um vilão com motivações desconhecidas, e todo um novo mundo diferente para explorar. É a dramatização da experiência de desbravar um RPG pela primeira vez. Assim como o filme de Dungeons & Dragons, Fallout celebra as histórias que surgem a partir das nossas interações com as mecânicas dos jogos e com vastos mundos abertos virtuais.
Lucy é um reflexo disso. Logo no início, a jovem apresenta sua “build”, descrevendo habilidades de combate, agilidade e manuseio de armas de fogo, mas evidencia também uma atitude otimista que é incompatível com a violenta superfície devastada, conhecida como Os Ermos. A jornada que a série propõe é a da construção de uma sobrevivente, levando a sério a ideia de “ganhar experiência”. Afinal, o que começa como uma simples missão logo se evidencia como uma enorme conspiração, envolvendo outros personagens, facções que atuam nos Ermos e até mesmo o passado antes das bombas nucleares caírem.

Ao mesmo tempo, o programa encontra espaço para desenvolver outros três protagonistas — Maximus (Aaron Moten), um soldado novato da Irmandade do Aço; Norm (Moises Arias), o irmão de Lucy que investiga mistérios na Vault 33; e O Necrótico (Walton Goggins), caçador de recompensas zumbificado que inferniza a protagonista —, além de aprofundar conflitos políticos desse mundo, e até explorar como era a vida antes da destruição nuclear.

O que poderia facilmente acabar sendo um seriado estufado resulta, na verdade, em uma obra que atinge perfeitamente o que faz os jogos serem tão amados: o balanço entre sátira ácida, humor macabro, intrigas empolgantes, e ambientação apaixonante.
A Guerra Nunca Muda

Ainda que tenha muito a ser elogiado em termos de estética, escrita e atuação, o seriado frequentemente deixa a desejar na direção. É curioso como um mundo tão original e intrigante é conduzido de forma tão desinteressada, sem vontade alguma de realmente fazer algo único com os ótimos cenários e figurinos que tem, recorrendo a fotografia pouco inspirada e ao uso excessivo de câmera lenta e efeitos especiais de qualidade duvidosa. Ainda que seja válido apontar tais características, não parece justo desmerecer o programa por conta disso, visto que toda a abordagem da produção é criar algo para ficar ao lado dos jogos — não acima, e nem abaixo.

Na época de Westworld, os criadores Jonathan Nolan e Lisa Joy (que é produtora-executiva de Fallout) constantemente compartilhavam seu fascínio pelo ato de jogar, de se imergir em um mundo virtual, da forma que os videogames se tornaram simulações complexas e realistas. Enquanto a série da HBO explorou as questões éticas da nossa relação com os games, Fallout vem como uma celebração das peculiaridades que amamos nos jogos, como a evolução gradual dos personagens, a trilha sonora marcante, a exploração de mundos fantásticos e as missões paralelas bizarras.
Quando se trata de adaptações, o ideal é que sejam capazes de ficar de pé sozinhas. Fallout se sai bem como série de TV, mas é melhor apreciada quando entendida como parte de um universo muito maior e orgulhosamente ‘videogamístico’. É uma maratona televisiva muito agradável, mas que te deixará sedento para criar um novo save no seu título favorito da saga, ou então desbravar o pós-apocalipse nuclear pela primeira vez, assim como Lucy.
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Com oito episódios, Fallout está disponível no catálogo do Amazon Prime Video.