Otimismo não leva a nada. Especialmente se o seu negócio for ficção científica.
Uma mente positiva poderá criar universos de tirar o fôlego e personagens que, de maneira direta ou por meio de alegorias, celebrem a excelência humana. Eventualmente, poderá até propor reflexões. Mas, na maioria das vezes, tenderá a buscar a catarse, a resolução. Somente o pessimista, sempre disposto a destacar o lado vão e sombrio da vida, será capaz de fazer a crítica mordaz que tanto enriquece o gênero.
Quer um exemplo? Compare o convencional final feliz que Steven Spielberg enfia em Minority Report: A Nova Lei (2002) à piscadela cínica que Paul Verhoeven nos dá na última cena de O Vingador do Futuro (1990).
Ambos os filmes são adaptações de contos do norte-americano Philip K. Dick (1928-1982), respectivamente, O Relatório Minoritário e Lembramos Para Você a Preço de Atacado — os dois, aliás, foram incluídos na coletânea brasileira Realidades Adaptadas, da editora Aleph. Embora nenhum dos longas-metragens seja fiel ao material original, o estrelado por Arnold Schwarzenegger ao menos se aproxima do espírito da obra de Dick no que se refere à ambiguidade e ao questionamento da realidade. Questões existencialistas, aliás, são uma constante na bibliografia do autor. E o melhor: elas vêm sempre aliadas a premissas bastante inventivas.
Um dos melhores exemplos é o romance Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, mais lembrado por ter servido de base para o roteiro de Blade Runner, o Caçador de Andróides (1982). Mas ele é muito mais do que isso.
Na trama, a Terra está mergulhada no inverno nuclear em decorrência de um confronto em escala global, a Guerra Mundial Terminus — uma nuvem de poeira cobre permanentemente o céu, quase toda a fauna do planeta foi extinta e a radiação ainda afeta os humanos, tornando alguns estéreis ou intelectualmente incapazes. Os governos remanescentes passam, então, a investir na colonização de outros planetas e, a fim de incentivar a emigração espacial, oferecem a cada família um androide para servir como empregado no novo lar. Muitos aderem ao programa, deixando para trás apenas os que optam por ficar ou os que são legalmente impedidos de viajar — no caso, os afetados pela radiação, chamados de Especiais.
O protagonista é Rick Deckard, caçador de recompensas contratado pela polícia de San Francisco para “aposentar andys”, ou seja, destruir androides rebeldes que assassinaram seus donos nas colônias e escaparam para a Terra. A ele é oferecida a arriscada missão de perseguir seis fugitivos equipados com a recém-lançada unidade cerebral Nexus-6, que aperfeiçoa a capacidade dos robôs de simular o comportamento humano — e que, portanto, os torna menos distinguíveis e mais perigosos. Assim, o primeiro passo de Deckard é visitar a Associação Rosen, fabricante dos androides. Seu objetivo é verificar se a Escala Alterada Voigt-Kampff, um questionário aplicado para identificar se o suspeito é um “andy” ou não, se mostra eficaz nos novos modelos.
A ambientação em um futuro pós-apocalíptico é típica do autor, que aproveita para explorar um de seus temas favoritos — a essência humana. Em Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, a palavra-chave é “empatia”, uma vez que a capacidade de se colocar no lugar do outro é apontada como fator que diferencia o homem da máquina. Essa é, por exemplo, a base do teste Voigt-Kampff, que consiste em uma série de perguntas chocantes para avaliar a reação do entrevistado. O problema imediato que isso traz é apontado no próprio contexto da narrativa: um sociopata conseguiria passar no teste?
Ademais, seria realmente a falta de empatia uma característica exclusiva de androides e pessoas com algum tipo de bloqueio emocional? Por mais que os robôs não estejam vivos de fato, eles imitam a vida nos mínimos detalhes. Eliminar tais criaturas a sangue-frio não seria um ato desumano? Inicialmente, Deckard justifica suas ações apoiando-se na ideia de que seus alvos são assassinos foragidos. Mas o encontro com a cantora de ópera Luba Luft, com o caçador de recompensas Phil Resch e, especialmente, com Rachael, sobrinha do presidente da Associação Rosen, mostra que a questão não é tão simples.
Uma das tramas paralelas aprofunda a discussão. Especial e com Q.I. abaixo da média, John Isidore exemplifica o tratamento dado pelos ditos Normais a pessoas como ele, consideradas escória e chamadas de “cabeças de galinha” — e o fato de ganharem um apelido pejorativo, assim como os “andys”, é cheio de significado. Nem mesmo os androides que cruzam o caminho de Isidore demonstram qualquer tipo de consideração, já que eles abertamente exploram sua boa vontade. Ironicamente, o Especial talvez seja o personagem mais empático do livro — e o fato de ele trabalhar em uma clínica para animais elétricos é representativo.
Na sociedade retratada por Dick, possuir um animal vivo é algo extremamente desejável, pois demonstra, mais uma vez, empatia para com os poucos espécimes que sobreviveram à guerra nuclear. A raridade dos bichos, todavia, faz com que seus preços disparem — há, inclusive, cotações oficiais, listadas em um catálogo divulgado mensalmente. Na prática, portanto, o que deveria ser um ato compassivo sincero acaba se tornando mera exibição de status. Tanto que comprar uma réplica mecânica, mais barata, é uma prática comum entre aqueles que não podem bancar um exemplar verdadeiro — o próprio Deckard se vê obrigado a adquirir uma ovelha elétrica depois que a sua morre. Os diferentes valores atribuídos a animais vivos e robóticos espelha a distinção feita entre humanos e androides, acrescentando mais uma camada à já complexa reflexão.
Por fim, a religião é outro elemento explorado pelo autor. O mercerismo, credo popular nesse futuro distópico, se baseia em uma noção comunitária — seus praticantes se conectam às chamadas “caixas de empatia” (olha ela aí de novo), que lhes permitem entrar na pele de seu líder, Wilbur Mercer, destinado a continuamente subir uma colina e ser apedrejado. Embora a ideia seja vivenciar coletivamente o martírio de Mercer, para os seguidores, a experiência acaba sendo uma forma de escapismo, similar à proporcionada pelos sintetizadores de ânimo — aparelhos que, como o nome sugere, suscita no usuário o estado de espírito pré-programado. Quem ilustra a similaridade entre as duas situações é Iran, esposa de Deckard, que utiliza com frequência tanto a caixa quanto o sintetizador — no caso do último, com o objetivo de se afundar em sessões diárias de depressão autoacusatória, para perplexidade do marido.
O arco do protagonista, aliás, simboliza o olhar do autor diante do vazio da existência. Deckard não pode ser considerado nem mesmo um herói relutante, já que não há redenção para ele — até sua epifania final se revela sem sentido. Do mesmo modo, Dick faz todas as perguntas apenas para constatar que quase nunca há respostas.