O cinema de terror brasileiro cresce cada vez mais, com um fluxo impressionante de talentos e produções de destaque que lidam com as questões mais complexas da realidade do país. A diretora paulista Mariana Bastos (Alguma Coisa Assim, Tapa na Pantera) é uma das cineastas que percebeu o potencial narrativo do gênero e usa Raquel 1:1 para explorar temas sensíveis como fanatismo religioso, feminicídio e machismo.
A trama segue Raquel (Valentina Herszage), que se muda para uma cidade pequena com o pai um ano após sua mãe morrer de forma trágica. Tentando recomeçar, ela vê a igreja como uma forma de se aproximar das outras jovens do local, mas vê essa integração indo por água abaixo quando passa a questionar passagens retrógradas da Bíblia. Esse conflito só aumenta quando, após uma visão, Raquel decide criar sua própria versão do texto sagrado.
Ao ritmo que avança, o longa passa a retratar o fervor religioso tal qual um culto, em que líderes aproveitadores conseguem mobilizar a opinião pública ao ponto da violência. Pela ambientação rural e por cenas de pregação em igrejas, há um toque de folk horror na obra, mas não se engane: é uma história tipicamente brasileira na forma que a religião, sua prática e seus dogmas moldam toda a noção geral de normalidade e comunidade.

Acontece que a mãe da protagonista, como é indicado desde o início, foi vítima de homicídio por um ex-namorado ciumento. Raquel presenciou o crime. Ouvir passagens da Bíblia que inferiorizam a mulher traz à mente da personagem conexões entre seu trauma e a ampla presença do dogma religioso na sociedade. Afinal, em sua visão, a idolatria cega até aos segmentos mais conservadores do texto sagrado podem sim ter um papel na manutenção de um mundo machista, em que homens se sentem no direito de tirar a vida de mulheres e justificar como crimes de amor ou ciúmes.
É um tema complexo e pesado, e dá para ver que Raquel 1:1 treme ao tentar carregá-lo. Surpreende que o filme nunca o deixe cair, mas também não chega ao ponto de desenvolver muitas das discussões que levanta. Isso, na verdade, ofusca muito de seus arcos ao criar a sensação de uma trama estufada, que sobrecarrega as personagens de questões difíceis, mas só dá atenção para algumas.
Nem a protagonista escapa disso, transitando entre seus traumas e o drama de se tornar a vilã da cidade. No entanto, o enorme talento de Valentina Herszage faz com que Raquel seja uma personagem fascinante. A atriz entrega uma performance contida, com dor internalizada e raiva comedida, que segura a atenção mesmo nas curvas bruscas que a trama dá. É uma pena que o restante do elenco não esteja a sua altura, mas isso só reforça o quão única é a jovem em meio à cidade.

Raquel 1:1 pode ser irregular, mas conquista pela coragem de cutucar a ferida ao sugerir uma conexão entre o fervor religioso e a sociedade patriarcal, ao mesmo tempo que não abre mão de sua aura sobrenatural. Poderia ser excelente com um pouco mais de foco, mas ainda assim surpreende e estabelece que tanto Mariana Bastos quanto a atriz Valentina Herszage têm futuro no gênero.
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