Cinebiografias se equilibram entre extremos. Adotar a versão não autorizada de uma história, por exemplo, geralmente possibilita explorar o apelo dos escândalos e polêmicas, mas muitas vezes significa se distanciar da perspectiva do próprio biografado. Em contrapartida, abraçar a narrativa oficial dá acesso a detalhes que só quem protagonizou os eventos poderia revelar, porém, traz o risco de a obra se tornar chapa-branca, inócua. De modo parecido, a romantização excessiva costuma desagradar os fãs da personalidade retratada, ao passo que a inflexível fidelidade aos fatos tende a alienar o grande público.
Outro desafio específico do gênero é a caracterização. Representações mais livres podem ter excelentes resultados, como o Mark Zuckerberg que Jesse Eisenberg interpreta com desenvoltura em A Rede Social (2010) e que pouco lembra o criador do Facebook na vida real. Todavia, Hollywood tem apostado cada vez mais em performances que buscam reproduzir com exatidão a aparência e os trejeitos do objeto da biografia. A estratégia não garante sucesso, podendo render atuações memoráveis, como o Truman Capote de Philip Seymour Hoffman em Capote (2005), ou constrangedoras, caso do Steve Jobs de Ashton Kutcher em Jobs (2013).
A divulgação das primeiras imagens e trailers de Bohemian Rhapsody indicava que seria mais um exemplo de caracterização fiel, algo que o longa-metragem agora confirma. Com dedicação e técnica, mais a ajuda de maquiagem, figurino, treinamento de expressão corporal e até uma prótese dentária, Rami Malek incorpora Freddie Mercury com precisão. A entonação, a energia e os maneirismos do vocalista do Queen fluem de modo natural. Já o elenco de apoio, embora competente, não apresenta grandes destaques. Gwilym Lee, Ben Hardy e Joseph Mazzello fazem um bom trabalho como os demais integrantes da banda — respectivamente, o guitarrista Brian May, o baterista Roger Taylor e o baixista John Deacon. Lucy Boynton, por sua vez, precisa se valer da química com o protagonista para dar vida a Mary Austin, amiga e companheira do cantor. E isso evidencia o principal defeito do filme: o roteiro.
A falha não reside no fato de Bohemian Rhapsody poder ser rotulado como versão oficial da história, uma vez que Brian, Roger e o ex-empresário Jim Beach atuaram como produtores executivos. Afinal, ao mesmo tempo que omite episódios controversos, como a turnê realizada na África do Sul em 1984 — quebrando o boicote mundial ao país em virtude do apartheid e causando significativo dano à imagem do Queen na época —, o longa não se esquiva de outros tópicos delicados, como a rotina de excessos do vocalista e as brigas entre os músicos por causa de royalties.
Também não é a adaptação dos fatos que prejudica a trama. Romantizar é prática comum em qualquer biopic e ajuda a construir uma narrativa atraente. Por exemplo, o relato de como Freddie se juntou a Brian e Roger mostrado na telona (o vocalista se apresenta aos dois após um show deles e, ao saber que acabam de perder seu frontman, se oferece para assumir a vaga) é pouco verossímil, mas certamente cativa mais do que a realidade (os três já eram amigos, e a criação do Queen foi um processo natural depois que a antiga banda do guitarrista e do baterista ficou sem cantor).
O problema do script é simples: ele é pobre. Cortesia de Anthony McCarten, responsável por outro exemplo de filme biográfico fraco, A Teoria de Tudo (2014). O roteirista pouco se esforça para estabelecer elementos importantes, como os relacionamentos entre o núcleo central de personagens. Freddie conhece Mary, ela o elogia por seu estilo peculiar, o casal aparece em momentos de intimidade e pronto — o espectador só sabe que a garota é a única pessoa que realmente conhece o vocalista porque ele afirma isso. Da mesma forma, a amizade entre os quatro músicos somente é inferida porque, bem, eles formam uma banda, aparecem juntos em muitas cenas e têm uma interação tocante no final (e mesmo ali a emoção é meramente fruto das circunstâncias, não algo elaborado). Em ambos os casos, os eventos simplesmente se sucedem, sem encadeamento.
Até quando busca seguir o valioso conceito literário de show, don’t tell (“mostre, não conte”), McCarten falha. Sua tentativa de ilustrar o diferencial artístico do Queen se resume a colocar na boca de Brian a fala “Vamos ser experimentais!”, seguida de uma embaraçosa montagem do quarteto em estúdio, gravando com objetos aleatórios (um balde, um punhado de moedas etc.), sem qualquer contextualização, em uma sequência que parece saída de uma paródia.
Seria injusto apontar o roteiro como único culpado. A película também sofre com a direção, que alterna achados interessantes — como alguns movimentos de câmera na festa na mansão de Freddie e na emblemática apresentação no Live Aid, em 1985 — com escolhas questionáveis, como os letreiros que anunciam as paradas da turnê da banda e as críticas do disco A Night at the Opera. Na maior parte do tempo, porém, ela é absolutamente convencional. É provável que parte dessa irregularidade se deva à saída do norte-americano Bryan Singer com dois terços das filmagens concluídos — a explicação oficial foi um problema de saúde na família do cineasta, mas nos bastidores fala-se em atritos com Rami Malek. Seja como for, o britânico Dexter Fletcher assumiu seu lugar. Devido às regras da Directors Guild of America, no entanto, apenas Singer é creditado.
Além da performance do astro principal, o que acaba dando liga ao longa-metragem é a música. Os sucessos Love of my Life, Under Pressure e Who Wants to Live Forever conferem peso dramático a três plot points; a gênese de We Will Rock You, Another One Bites the Dust e da faixa que dá título à película preenche buracos no enredo, ainda isso seja apresentado de forma quase anedótica; por fim, o já mencionado show no Live Aid funciona como o clímax perfeito.
Diferentemente de outras cinebiografias, Bohemian Rhapsody não se equilibra entre extremos. Ao seguir fórmulas, ignorando o exemplo de ousadia que o Queen inspira, o filme apenas fica no meio do caminho.