Algumas definições de ficção científica se concentram no aspecto temático. Segundo elas, seria o gênero que trata, como o nome indica, da ciência e suas ramificações, das factíveis (inteligência artificial, viagem espacial, etc.) às mais fantasiosas (androides, civilizações extraterrestres, assim por diante).
O professor e crítico literário Darko Suvin, porém, prefere outra abordagem. Em sua influente obra Metamorphoses of Science Fiction (publicada em 1979, sem edição no Brasil), o acadêmico nascido na antiga Iugoslávia propõe dois conceitos, que ele chama de distanciamento (estrangement) e cognição (cognition).
O primeiro se refere à maneira de refletir a realidade: enquanto o naturalismo a reproduz fielmente, o distanciamento cria uma versão significativamente diferente – uma que permite ao leitor reconhecer o objeto, mas também provoca nele alguma estranheza.
O segundo se refere à maneira de refletir sobre a realidade: outras ficções não naturalistas, a exemplo do mito e dos contos folclóricos, a encaram como algo fixo, determinado, e assim buscam “explicar de uma vez por todas a essência dos fenômenos”, de acordo com o acadêmico. A cognição, por sua vez, enxerga uma realidade mutável, variável, e considera as explicações míticas como mera “realização temporária de contingências potencialmente ilimitadas”.
Em outras palavras, ao combinar distanciamento e cognição, a ficção científica apresenta um novo mundo, ao mesmo tempo familiar e espantoso; alimenta-se da curiosidade diante do desconhecido, bem como da chance de transformação que ele representa; é, portanto, um gênero de possibilidades.
A Duna de Herbert

As ideias de Suvin ainda não haviam sido publicadas quando Duna chegou às livrarias, em 1965. Mesmo assim, não é um disparate imaginar que seu autor, o norte-americano Frank Herbert (1920-1986), ele próprio um grande consumidor e conhecedor de ficção científica, possa ter chegado por outros caminhos a conclusões parecidas.
O cenário em que Herbert ambienta a maior parte de sua história é reconhecível para qualquer leitor (ainda que a maioria nunca tenha pisado em um deserto). O espanto vem da escala planetária, que logo instiga uma série de perguntas: Arrakis (também chamado Duna) sempre foi assim? Quem moraria em um lugar como esse? De que maneiras os Fremen, os povos locais, tiveram de se adaptar para conseguir sobreviver? Como isso afetou sua cultura? E, mais importante, por que um planeta tão inóspito está no centro das atenções do Imperium, o governo comandado pelo imperador padixá e pelos nobres das Grandes Casas?
De modo engenhoso, o autor atrela as respostas a outros elementos igualmente provocantes, inscritos no mesmo conflito familiaridade/estranhamento e capazes de gerar seus próprios desdobramentos. Por exemplo, a conexão entre a especiaria mélange, nativa e exclusiva de Arrakis, e o ecossistema do planeta. O modo como a Guilda Espacial depende do mélange para realizar as viagens interestelares e, consequentemente, desenvolver toda a atividade comercial na galáxia. A disputa entre duas das Grandes Casas, os Atreides e os Harkonnen – respectivamente, os novos e antigos administradores de Duna. O papel da seita mística das Bene Gesserit, que atuam nos bastidores e influenciam os rumos do Imperium.
Amarrando esse enredo complexo e altamente envolvente, há um fio condutor que aproxima a obra do outro conceito proposto por Suvin, o da cognição. Ao retratar o nascimento de um messias, personificado no protagonista, o jovem Paul Atreides, o livro também expõe o próprio discurso do mito.
É clara a intenção de Herbert de investigar “o impacto de um messias [...] como criador de uma estrutura de poder”, conforme ele explica em uma edição especial de Duna em audiobook, lançada em 1983. Na visão do autor, o que as narrativas míticas em geral deixam de fora é que figuras messiânicas arrebanham seguidores fanáticos e, dessa forma, criam condições para que a corrupção cresça ao seu redor. Segundo ele, o poder em si não corrompe, mas atrai os corruptíveis.
O paralelo que primeiro vêm à mente é com Jesus ou Maomé: líderes carismáticos, revolucionários, tidos como messias e surgidos entre povos do deserto. A comparação preferida do escritor, entretanto, mencionada por ele em mais de uma ocasião, é com o presidente norte-americano John F. Kennedy: popular, possivelmente bem-intencionado, mas envolto em um círculo pouco confiável, e cultuado após seu assassinato, em 1963.
Outras alegorias em Duna podem ser interpretadas de maneiras distintas. O mélange, por exemplo, é muitas vezes lido como um comentário sobre o petróleo: um recurso limitado, controlado em grande parte por nações do Oriente Médio e extremamente disputado, tendo, inclusive, motivado guerras. Entretanto, pode ser entendido simplesmente como referência a drogas alucinógenas.
A Duna de Jodorowsky

“Quando você faz um filme, você não deve respeitar o livro. É como se casar [...]: se você respeitar a mulher, você nunca terá um filho. Você deve rasgar o vestido para violar a noiva. [...] Eu estava violando Frank Herbert… mas com amor”. É com essa imagem sexista e inadequada, para dizer o mínimo, que o chileno Alejandro Jodorowsky explica seu tratamento à adaptação cinematográfica da obra, em Duna de Jodorowsky (2013).
O documentário, dirigido por Frank Pavich, se debruça sobre uma das primeiras tentativas de levar o clássico da literatura para as telonas. O projeto foi encampado por produtores franceses, que adquiriram os direitos e começaram a desenvolvê-lo em 1974. Artista de vanguarda, respeitado pela crítica mas com pouco apelo comercial, Jodorowsky foi convocado e mergulhou de cabeça – apesar de, na época, ainda não ter lido o livro.
Quando o fez, o aspecto que lhe chamou a atenção no romance foi o sensorial: a noção de expansão da consciência vinculada à especiaria. Assim, buscou adaptá-lo como um filme que reproduzisse visualmente os efeitos do ácido lisérgico (LSD), o alucinógeno em voga na época. “Eu queria fabricar a droga [por meio do] cinema e mudar a mentalidade do público”, conta.
Da mesma forma, a questão espiritual, tangencial na fonte, ganhou destaque. Responsável também pelo roteiro, o cineasta reforçou o caráter messiânico de Paul, inventando uma origem imaculada: o duque Leto Atreides seria castrado; para conceber o filho, sua concubina, lady Jéssica, seria inseminada com uma gota de sangue. No tresloucado e radicalmente diferente final, o protagonista morreria; Arrakis, então, assumiria sua consciência, se transformaria em um paraíso verdejante e sairia galáxia afora, iluminando outros planetas.
Teorizar sobre algo que não se concretizou é um exercício infrutífero. Todavia, tendo em vista as ideias acima e a filmografia anterior do diretor, é justo supor que a película resultante teria sido experimental e hermética. A aura cult que cerca essa versão fracassada é fruto da visão romântica geralmente lançada sobre projetos interrompidos. E, principalmente, devido ao time que, teoricamente, estaria envolvido em sua realização.
O elenco reuniria nomes díspares como David Carradine (no papel do duque Leto), Orson Welles (barão Harkonnen), o cantor Mick Jagger (Feyd-Rautha) e o pintor Salvador Dalí (imperador), entre outros. A ficha técnica incluiria ainda trilha sonora da banda Pink Floyd, artes conceituais de Jean “Moebius” Giraud, Chris Foss e H.R. Giger e efeitos visuais de Dan O’Bannon. Por sinal, esses dois últimos, depois de se conhecerem nos bastidores, se reuniram anos depois em outro longa-metragem, no qual Giger atuou como designer e O’Bannon, como roteirista: Alien, o 8º Passageiro (1979), dirigido por Ridley Scott.
Para o bem ou para o mal, o projeto não foi para frente, em virtude do orçamento exigido e das credenciais de Jodorowsky, pouco animadoras para os executivos de Hollywood. Com isso, os direitos puderam ser adquiridos pelo produtor Dino de Laurentis, com larga experiência em trabalhos comerciais. O ítalo-americano levou mais alguns anos até finalmente conseguir tirar o filme do papel. Para comandá-lo, entretanto, escolheu outro diretor que inicialmente não conhecia o material original.
A Duna de Lynch
Em entrevista a um programa de tevê espanhol, durante a promoção de sua adaptação de Duna (1984), David Lynch explica o que o atraiu no livro com essa fala, que funciona melhor hoje do que na época:
“Gostei da ideia de viajar a quatro mundos diferentes e de contar uma história de aventura na superfície, mas com um despertar acontecendo ao mesmo tempo [...]. Eu meio que me apaixonei pela ideia de [ter] tantas coisas em um só filme.”
Considerado um surrealista, o cineasta norte-americano é atualmente reconhecido por imprimir uma atmosfera etérea em suas obras, nas quais as fronteiras entre sonho e realidade se misturam, e a lógica tem menos importância que as sensações despertadas. Assim, a noção de narrativas simultâneas em mundos diferentes, que ele diz ter depreendido do livro de Herbert, pode hoje ser entendida como expressão de seu estilo.
Ou, ainda, como sua maneira de interpretar o principal tópos (o lugar-comum literário) da ficção científica, segundo o professor Suvin: a jornada à “ilha no oceano distante” ou ao “vale fora do alcance”, um lugar exótico onde tudo parece diferente.
No contexto do lançamento do filme, porém, a explicação do diretor (e, no caso de Duna, roteirista também) soa mais como justificativa para uma obra cheia de falhas: o ritmo equivocado, com passagens arrastadas na primeira metade e um terceiro ato apressado; a estrutura quase episódica, em que muitos eventos apenas se sucedem, sem qualquer encadeamento; a aparição protocolar de alguns personagens, sem função na trama.
Mais fiel à fonte do que os devaneios de Jodorowsky, a versão de Lynch promove algumas alterações que, embora questionáveis, não chegam a ter impacto negativo – casos do navegador da Guilda Espacial, retratado como um cérebro gigante, e da doutrina dos sortilégios, o estilo de luta das Bene Gesserit, transformada em uma espécie de arma sônica.
Outras mudanças prejudicam o filme. Em especial, a que se refere ao barão Harkonnen (interpretado com dedicação por Kenneth McMillan). Ele é reduzido a um vilão caricato, que se expressa com um excesso de caras e bocas e, de quebra, tem o corpo coberto de pústulas. Esse último traço talvez se explique por um interesse de Lynch pela estética das deformidades corporais, explorada também em seus dois filmes anteriores, Eraserhead (1977) e O Homem Elefante (1988).
Seria injusto atribuir todos os erros ao cineasta, que enfrentou um longo processo de gestação do roteiro (estendido por um ano e meio), com diversos tratamentos e revisões, e uma posterior batalha com os produtores, que exigiram redução do tempo de duração e terminaram por retalhar a obra. Ao menos Lynch ficou com a lição: nunca mais assinar um contrato que não lhe garantisse a prerrogativa do corte final do filme.
Tamanho é o fascínio exercido por Duna que mesmo artistas como Jodorowsky e Lynch, sem qualquer conhecimento prévio da história, se propuseram a contar suas próprias versões. E um cineasta como o canadense Denis Villeneuve, fã declarado, agora se sente compelido a revisitá-la, na tentativa de criar uma adaptação cinematográfica mais contundente, se não definitiva. Com suas múltiplas camadas temáticas, o livro de Frank Herbert permite todas essas leituras e outras mais. Assim como a ficção científica, é uma obra de possibilidades.