Afinal, que diabos é um clássico?
A origem latina da palavra dá a dica: referia-se aos cidadãos mais abastados, a elite da sociedade de Roma. Por analogia, começou a ser usada pelos críticos da época para definir a nata das literaturas grega e romana, consideradas modelares. Com o passar do tempo, foi se generalizando. Claro, no contexto da crítica literária, ainda diz respeito, especificamente, aos autores da Antiguidade. Mas, fora dele, “clássico” pode ser qualquer coisa de destaque em sua área, até mesmo uma partida de futebol entre rivais tradicionais.
![Clássico original: os membros do senado formavam a elite da sociedade romana [afresco de Cesare Maccari, 1889]](https://uploads.jovemnerd.com.br/wp-content/uploads/2017/01/OldManLogan-2o-parágrafo-760x474.jpg)
Os quadrinhos também contam com um cânone, conceito reforçado pela divisão de sua história em eras — a de Ouro, entre 1938 e 1955, quando foram criados Super-Homem, Batman, Mulher-Maravilha e Capitão América; a de Prata, entre 1956 e 1970, com a introdução da Liga da Justiça, do Quarteto Fantástico e de personagens como Hulk e Homem-Aranha; e a de Bronze, de 1971 a 1985, marcada por arcos como o Quarto Mundo, na DC, e a morte de Gwen Stacy e Dias de um Futuro Esquecido, na Marvel. Significativamente, o início da era moderna das HQs, a partir de 1986, foi marcado por títulos que quebraram paradigmas de personagem (O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller), de gênero (Watchmen, de Alan Moore) e de narrativa (Sandman, de Neil Gaiman).
Pungente que nem uísque
Não é de se espantar, portanto, que Miller e Moore estejam entre as principais influências do escocês Mark Millar. Sátira, ambiguidade moral e um subtexto repleto de comentários ácidos sobre a sociedade contemporânea são algumas das marcas do trabalho do escritor, famoso por graphic novels como Kick-Ass, Wanted – O Procurado e Kingsman: Serviço Secreto, bem como pelo crossover Guerra Civil, da Marvel.

Outro talento de Millar é desenvolver tramas que prendem o leitor desde a premissa. Se em Superman – Entre a Foice e o Martelo ele havia nos mostrado o que aconteceria se a nave de Kal-El tivesse caído na União Soviética em vez de nos Estados Unidos, em Old Man Logan somos apresentados a um mutante envelhecido que, traumatizado por um acontecimento do passado, se mantém fiel à promessa de nunca mais usar suas garras.
Publicada originalmente entre junho de 2008 e setembro de 2009, a série é ambientada em um futuro distópico no qual os supervilões se uniram e aniquilaram praticamente todos os super-heróis. Como resultado, os EUA foram divididos em quatro territórios, atualmente governados pelo Hulk, pelo Rei do Crime, pelo Dr. Destino e pelo “presidente” (cuja identidade somente é revelada mais adiante na narrativa). Casado e pai de duas crianças, Logan leva uma vida ordinária em uma fazenda no território do Hulk, até ser localizado pelo Gavião Arqueiro — o ex-Vingador o convence então a embarcar em uma última missão que colocará à prova sua decisão de ser um pacifista.
O trunfo do autor escocês é atribuir a um dos personagens mais fodões dos quadrinhos o improvável papel de herói relutante. Como o nome sugere, esse arquétipo se caracteriza por uma recusa inicial de se envolver com os eventos da trama, o que gera um acúmulo de tensão e culmina em um momento catártico — o despertar do herói, que pode ser sua hora da virada (pense em Aragorn encarando o rei do Exército dos Mortos e o persuadindo a lutar ao seu lado, em O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei) ou, mais frequentemente, o clímax da narrativa (Neo ressuscitando e chutando a bunda do agente Smith, em Matrix).
A catarse em Old Man Logan existe e é épica. Mas ela só é possível porque o motivo que leva Wolverine a evitar o conflito é construído com engenhosidade e se mostra plenamente satisfatório. Além desses pontos-chave, Millar ainda nos brinda com outras passagens memoráveis, como o simbionte Venom ligado a um T-Rex (?!) e a luta entre Logan (ainda sem usar suas garras) e um famosíssimo vilão do universo Marvel (não vamos dar spoilers aqui, certo?).
O mérito, é claro, deve ser dividido com Steve McNiven. O artista canadense, que já havia trabalhado com Millar em Guerra Civil, consegue ambientar a trama com profundidade explorando detalhes certeiros, como as nuvens de poeira nas planícies desérticas e cidades soterradas, os equipamentos tecnológicos porém castigados nas metrópoles decadentes, e, acima de tudo, o design dos personagens — o Logan que surge logo nas primeiras páginas, com cabelos grisalhos e rosto coberto de rugas e cicatrizes, é uma das imagens mais poderosas dos quadrinhos recentes. Além dessas minúcias, McNiven é capaz de criar painéis de tirar o fôlego, como os que revelam o destino de alguns heróis caídos e, especialmente, os que trazem o desfecho das batalhas pra lá de sangrentas.
A obra tem virtudes suficientes para ser considerada um clássico daqui a algumas décadas. A não ser que estejamos condenados a um futuro distópico no qual o filme X-Men Origens: Wolverine é que mereça essa distinção...