Ainda que seja um dos melhores filmes de terror clássicos e uma das melhores continuações já feitas, o título de A Noiva de Frankenstein (1935) é enganoso. A personagem titular — imortalizada por Elsa Lanchester por seu visual memorável – dá as caras somente nos momentos finais da produção e sequer é a figura central da trama.
Sua participação serve apenas como extensão de uma reflexão do Monstro de Frankenstein (Boris Karloff) sobre a maldição da existência. A Noiva, outra criação monstruosa cujo propósito é fazer companhia ao Monstro, mal consegue dar um passo antes da criatura decidir abrir mão da vida e levá-la com ele, declarando: “Nós pertencemos aos mortos.”
Pobres Criaturas, por sua vez, imagina uma realidade em que a tal criação tem uma nova chance de viver, crescer e encontrar a si própria como uma mulher, sem as amarras do criador. Baseado no livro homônimo de Alasdair Gray, o novo filme de Yorgos Lanthimos (O Lagosta, A Favorita) homenageia e reinterpreta Frankenstein para entender: o que é uma vida que vale a pena ser vivida?
Sociedade Civilizada

Ainda que Pobres Criaturas ressalte o quão vital é essa jornada, nunca chega a idealizá-la, reforçando que há muitos horrores no processo. Há muita diversão, claro, mas também angústia inerente em abordar o mundo através de tentativa-e-erro. Bella viaja, dança, come pastéis de nata em Portugal, faz amizades, mas, simultaneamente vê a injustiça, a escassez e é manipulada e explorada por gente mal intencionada ou mal resolvida.
Mesmo assim, o jeito que a protagonista lentamente conquista a própria vida é bem bonito, corajoso e autêntico. Sem pudor, Bella atende aos desejos da carne e da mente curiosa, e não tem medo de questionar normas e etiquetas. “A sociedade civilizada vai te matar”, afirma um amigo para a personagem, que logo absorve a fala como mantra.
Bella Baxter só se torna fascinante na mão de Emma Stone. Ingênua e cheia de trejeitos bizarros, poderia facilmente ser uma personagem muito irritante na mão de alguém menos talentosa. Felizmente, não é o caso de Stone, que se encontra na curiosidade genuína e na ousadia da protagonista. Nos momentos iniciais, quando Bella ainda é, efetivamente, uma criança, a performance é um pouco caricata demais, mas a atriz cresce ao lado da personagem no decorrer da trama e se torna verdadeiramente magnética.

Como o monstruoso criador Godwin Baxter, Willem Dafoe é sóbrio, macabro e controlador de forma paternal, transmitindo os traumas de sua criação à Bella. Já Max McCandles (Ramy Youssef), assistente de Godwin que se apaixona pela jovem criatura, tenta impedir a jornada de autodescobrimento sob a desculpa do amor. Mas é o Duncan Wedderburn de Mark Ruffalo que se mostra o principal antagonista.
Veterano de comédias românticas em um passado pré-Hulk, Ruffalo deixa seu charme para trás e abraça uma persona mesquinha, ciumenta e pequena, que persegue Bella quase como um espírito obsessor ao perceber que não é capaz de controlá-la. Alívio cômico pelo desprezo, o personagem enfatiza muito bem como a protagonista trilha o caminho certo. Não que Ruffalo fique a altura da atuação poderosa de Emma Stone, mas é sim um complemento necessário.
Absurdismo barroco

Esteticamente, nada aqui é convencional, mas memorável e impactante. Diálogos comuns são distorcidos por lentes olho-de-peixe, zooms dramáticos e rápidos movimentos de câmera. Ao ritmo em que Bella se descobre, o visual evolui do cotidiano rodado em belíssimo preto-e-branco para um exuberante mundo colorido marcado por cenários propositalmente teatrais. Um contraste entre a beleza e a artificialidade da tal Sociedade Civilizada do mundo exterior. Todo figurino, especialmente os usados pela protagonista, são lindos de morrer. É uma sobrecarga dos sentidos de excelência quase barroca, para se assistir babando em todo detalhe.

Não é surpreendente que Pobres Criaturas seja um dos filmes mais falados da temporada de premiações, tendo acumulado impressionantes 11 indicações ao Oscar 2024. A nova parceria entre Yorgos Lanthimos e Emma Stone é ousada em todos aspectos, do visual à temática.
Na era em que certo puritanismo varre os debates e redes sociais, é refrescante ver um filme que compreende que o caminho para a autoafirmação é repleto de altos, baixos e pessoas de todas as índoles. O importante é se deixar levar pela curiosidade e pela autocompaixão. No fim das contas, há muito a se aprender com Bella Baxter.
Pobres Criaturas chega aos cinemas brasileiros em 1º de fevereiro. O filme disputa 11 indicações ao Oscar, incluindo de Melhor Filme. A cerimônia de entrega dos prêmios acontece em 10 de março.