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Malévola: Dona do Mal | Crítica
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Malévola: Dona do Mal | Crítica

Sem o conceito interessante do filme anterior, fraca sequência aposta no carisma do trio central.

Daniel John Furuno
Daniel John Furuno
15.out.19 às 13h38
Atualizado há mais de 1 ano
Malévola: Dona do Mal | Crítica

Em um estudo conduzido na década de 1920, o teórico russo Vladimir Propp se deparou com um intrigante paradoxo: os contos de magia apresentam enorme variedade e, ao mesmo tempo, se mostram surpreendentemente uniformes. Ele encontrou a explicação ao se debruçar sobre o folclore de seu país natal e desmembrar as histórias naquilo que considerava seus elementos mais básicos, batizados de “funções de personagens”. Tais funções podem ser descritas como as ações que fazem o enredo avançar; além de reduzíveis a uma única palavra (dano, partida, fornecimento, combate e reparação, entre outras), elas são limitadas (há apenas três dezenas delas) e constantes, apresentando-se sempre na mesma ordem. Assim, Propp concluiu que, do ponto de vista estrutural, os contos de magia seguem o mesmo padrão, baseado em funções que existem em um número reduzido, em comparação ao universo de diferentes personagens e seus atributos. Daí o caráter contraditoriamente invariável e diverso desse tipo de narrativa.

Redescoberto no Ocidente a partir do final dos anos 1960, o trabalho do russo se tornou influente, servindo de referência para acadêmicos interessados não somente no folclore de outras partes do mundo como também em literatura. Propp reconheceu essa possibilidade, todavia, ressaltou as limitações do emprego de seu estudo — que pressupõe a ocorrência de repetições — para investigar gêneros que celebram a originalidade. “O gênio de Dante e o de Shakespeare não se repetem e sua análise não pode ser reduzida aos métodos exatos”, escreveu. Há ainda outro fator que inviabiliza tal extrapolação. No esquema proposto pelo teórico, dois elementos são identificados como opcionais na estrutura dos contos; na concepção moderna, no entanto, eles são essenciais a qualquer trama: a ligação, responsável pelo encadeamento dos eventos, e a motivação, que justifica ações e reações.

Sem querer, Malévola (2014) tangencia algumas ideias de Propp. Em sua premissa de reinterpretar a história da Bela Adormecida, na leitura imortalizada pela Disney na animação de 1959 — que, por sua vez, adapta a versão do francês Charles Perrault, datada do século 17 —, o longa-metragem é bem-sucedido, especialmente quando subverte os padrões, atribuindo funções a personagens diferentes do habitual. Malévola (Angelina Jolie), por exemplo, age como vilão e herói, já que ela causa o dano, mas também parte em jornada e entra em combate para conseguir sua reparação; Aurora (Elle Fanning), por sua vez, atua como vítima (sofre o dano) e provedor (fornece o meio mágico necessário para a reparação).

Ao término da sucessão de funções, alguns contos de magia seguem em frente, dando início a uma nova sequência, similar à anterior. A própria versão de Perrault da Bela Adormecida tem uma segunda parte, envolvendo a princesa, seus filhos e a sogra. Nesse aspecto, Malévola: Dona do Mal poderia ser considerado um acréscimo coerente. Todavia, como obra direcionada a um público moderno, o filme precisa lutar justamente contra a repetição que caracteriza as histórias folclóricas. Para isso, escolhe caminhos pra lá de duvidosos. Na trama, após os eventos do primeiro longa, Aurora, alçada à posição de regente de Moors, é pedida em casamento pelo príncipe Phillip (Harris Dickinson) e convence Malévola a acompanhá-la em um jantar para conhecer a família do noivo. Sem que a jovem saiba, sua futura sogra, a rainha Ingrith (Michelle Pfeiffer), planeja eliminar todas as criaturas mágicas, que enxerga como ameaça.

Linda Woolverton novamente assina o roteiro, agora em parceria com Micah Fitzerman-Blue e Noah Harpster. Abandonando o maior atrativo do filme anterior — a noção de confundir os papéis e brincar com expectativas e lugares-comuns —, os escritores recorrem a uma narrativa absolutamente convencional, focada na busca por identidade. Aurora se vê dividida entre a origem humana e a conexão com as fadas, algo que renderia um bom arco dramático, caso conduzisse à obrigação de uma escolha entre as duas figuras maternas, Malévola e Ingrith — o script chega a sugerir isso, entretanto, falha em estabelecê-lo apropriadamente, pois deixa de desenvolver a relação entre a garota e a rainha.

Outra chance perdida envolve a protagonista. Graças a uma narração corrompida dos eventos passados, que omite o fato de ela ter salvo a princesa no final, Malévola volta a ser temida pelos homens. Trata-se de uma solução criativa, que poderia nortear o conflito interno da fada (que tal a instigante ideia de que a percepção dos outros é capaz de transformar alguém em vilão?), mas é logo deixada de lado e relegada a detalhe. Em vez disso, os roteiristas preferem atrelar a nova jornada da protagonista a uma backstory bastante problemática, que traz questionamentos retroativos ao primeiro longa, bem como introduzir uma origem mítica sem qualquer contexto, cujo único intuito é justificar um acontecimento previsível no terceiro ato.

Os recém-chegados não têm melhor sorte. Michelle Pfeiffer parece à vontade interpretando a rainha, embora não tenha muito mais a fazer além de distribuir olhares ameaçadores, discursos genéricos e atos de maldade caricatos. Por sinal, uma de suas ações cruciais no enredo muda fundamentalmente a maldição do filme original, em mais uma derrapada do script. Warwick Davis se esforça em vão para extrair algo do pixie Lickspittle, assim como Chiwetel Ejiofor e Ed Skrein são desperdiçados como os esquecíveis Conall e Borra. Curiosamente, a personagem mais rasa é a que sobressai — com seu porte franzino, a atriz Jenn Murray cria um contraste divertido dando vida a Gerda, o estereótipo do capanga sádico.

A escalação de um diretor mais experiente do que o então estreante Robert Stromberg, do longa anterior, é um ponto positivo. O norueguês Joachim Rønning acrescenta um toque pessoal à estética, com tomadas mais inventivas — caso de uma logo no início, combinando os movimentos de câmera dolly in e roll para refletir o suposto caráter distorcido da narrativa — e conceitos visuais interessantes, especialmente na batalha final, onde explora a diferença de perspectiva entre humanos e seres fantásticos.

Mas Malévola: Dona do Mal acaba se apoiando mesmo é no carisma das três atrizes principais, o que deveria ser apenas o ponto de partida em um projeto desse porte. Ao que parece, o único conceito do folclore que os realizadores aproveitaram desta vez foi considerar a ligação e a motivação como elementos opcionais. Aí não há magia que salve.

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