Não há regras para garantir o êxito de uma adaptação literária para o cinema. Se a fidelidade ao material original fosse condição obrigatória, por exemplo, não teríamos películas como O Iluminado (1980), de Stanley Kubrick, e Blade Runner, o Caçador de Androides (1982), de Ridley Scott. Ambos se distanciam bastante de suas fontes — respectivamente, o romance homônimo de Stephen King e o conto Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, de Philip K. Dick — e, no entanto, são tidos como pontos altos nas filmografias de seus diretores. Da mesma forma, se obras outrora consideradas difíceis de serem filmadas fossem deixadas de lado, Peter Jackson jamais teria concebido a trilogia O Senhor dos Anéis, baseada no clássico de J. R. R. Tolkien.
Jogador N°1, de Ernest Cline, é um daqueles livros que você logo imagina transposto para a telona. Afinal, a caça ao tesouro que movimenta a trama tem atmosfera cinematográfica, intencionalmente reminiscente de aventuras da década de 1980, como Os Caçadores da Arca Perdida (1981) ou Os Goonies (1985), com suas charadas e quebra-cabeças. Tanto que antes mesmo de a primeira edição chegar às livrarias, os direitos de adaptação já haviam sido adquiridos — e Cline, contratado para escrever o primeiro tratamento do roteiro.
A empreitada, no entanto, apresentava dois problemas evidentes — o primeiro, contornável, uma vez que a tecnologia atual em computação gráfica já possibilita criar um dos elementos principais da trama: o OASIS, plataforma de realidade virtual na qual grande parte da população embarca para fugir dos problemas do mundo real, no futuro distópico descrito pelo autor. O segundo problema, bem mais complexo: como adquirir os direitos de uso para as milhares de referências de filmes, séries, desenhos, jogos, músicas e outros elementos da cultura pop mencionados no romance?
O envolvimento de Steven Spielberg como diretor e produtor da versão cinematográfica fez toda a diferença. Além de ser sinônimo de aventura centrada em personagens e de dominar os efeitos visuais como ferramenta de narrativa, o peso de seu nome certamente ajudou a abrir portas em outros estúdios e companhias em termos de liberação de direitos. Ainda assim, muita coisa ficou de fora — algumas, por questões jurídicas, outras, por escolha própria. O cineasta preferiu, por exemplo, evitar referências a seus próprios longas (possivelmente para não passar a ideia de autocelebração) e também a Star Wars (segundo ele, devido ao fato de essa ser uma franquia presente e em andamento).
Nada que prejudique o filme. Mesmo com algumas ausências notáveis, há inúmeras aparições que farão os nerds terem uma síncope. Algumas são importantes para o desenrolar da história, como a do robô de Gigante de Ferro (1999); outras, são claramente fanservice, como a de Chucky, de Brinquedo Assassino (1988) — que, ainda assim, é responsável por um dos momentos mais divertidos do longa.
Fãs do livro talvez se queixem das diferenças com relação ao enredo. Em linhas gerais, ele permanece o mesmo: após sua morte, o excêntrico criador do OASIS, James Halliday (Mark Rylance), envia uma mensagem a todos os usuários, na qual lança um desafio — quem encontrar o Easter Egg, um item escondido no universo virtual, herdará sua fortuna e o controle de sua empresa. Isso dá início a uma grande caçada, da qual participam aqueles que buscam apenas riqueza e os que querem impedir que o OASIS caia nas mãos de Nolan Sorrento (Ben Mendelsohn), presidente da Innovative Online Industries (IOI), empresa que deseja monetizar a plataforma.
O perfil do protagonista Wade (Tye Sheridan) também se mantém, em grande parte. Órfão, morador de uma “pilha” (comunidade pobre em que as casas são velhos motorhomes empilhados), ele passa boa parte do dia logado, na pele de seu avatar, Parzival, ao lado de seu único amigo, o avatar Aech (Lena Waithe). No entanto, com os cortes feitos na adaptação, um importante traço de sua personalidade acabou sendo modificado. Enquanto no livro Wade é um ardoroso defensor do OASIS — que considera responsável por sua alfabetização e criação, graças aos programas educativos —, no filme, ele é, inicialmente, apenas um geek fascinado com tudo o que diz respeito a Halliday e à caça ao ovo. Mas essa mudança realizada pelo roteirista Zak Penn e por Cline, coautor também do script final, não é negativa, uma vez que fortalece o arco do personagem principal, bem como sua relação com a avatar Art3mis (Olivia Cooke) — é por intermédio dela que Wade começa a descobrir mais a respeito do caráter e das intenções de Sorrento.
Outra coisa que pode irritar os fãs é o fato de as missões para conquistar as três chaves que conduzem ao ovo terem sido alteradas radicalmente. Aqui, além da questão dos direitos — a não liberação pode ter impedido o uso das obras mencionadas no romance —, é preciso considerar dois pontos importantes. O primeiro, mercadológico, se refere à audiência ampla que um filme como esse se destina a atingir. Os jogos e filmes que integram as quests originais podem ser velhos conhecidos dos nerds e de quem foi criança nos anos 80, mas Spielberg e os roteiristas devem ter preferido — compreensivelmente — optar por elementos mais familiares ao grande público. E o segundo ponto, técnico, é igualmente justificável. Retratar um personagem jogando videogame ou reproduzindo todas as falas de um filme pode funcionar no livro, mas provavelmente não renderia sequências de grande apelo. Daí a escolha por versões dos desafios um pouco mais, digamos, cinematográficas.
Talvez a única diferença lamentável seja com relação aos coadjuvantes, que perderam muito de sua importância. O arco de Aech, por exemplo, incita discussões interessantes a respeito de identidade no romance, mas sua contraparte no filme acaba praticamente reduzida a alívio cômico. Já os avatares Daito (Win Morisaki) e Shoto (Philip Zhao), que vivem uma das passagens mais sombrias no livro, apenas estão lá na tela. Mais uma vez, são decisões que podem desagradar, mas têm sua razão de ser — neste caso, são cortes em nome do ritmo e da concisão.
Ao final de duas horas, Spielberg entrega um longa divertido e empolgante, como há muito não fazia. Pode não ser revolucionário ou arrebatador como as películas que dirigiu em sua fase áurea, mas certamente consegue retomar o clima leve e despretensioso de outras obras importantes das décadas de 80 e 90, celebrando-as com justiça. E esse é o espírito do livro.