“Não somos definidos por nossas lembranças. O que fazemos é o que nos define”. O pensamento, enunciado em dois momentos distintos, resume o tema principal de A Vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell — a motivação da protagonista ao longo de toda a trama é a busca pela identidade. E essa é, em muitos aspectos, uma questão importante para o próprio filme.
Lançado em 1995, o anime Ghost in the Shell, com roteiro de Kazunori Ito e direção de Mamoru Oshii, é tido como um dos mais influentes do gênero. Ainda assim, difere significativamente de sua fonte, o mangá homônimo de Masamune Shirow, publicado entre 1989 e 1990. As mudanças são justificáveis — seria impraticável comprimir o amplo espectro de assuntos abordados nos quadrinhos de Shirow em um longa-metragem, ao mesmo tempo que os interlúdios cômicos presentes no mangá dificilmente combinariam com a temática existencialista que Ito e Oshii decidiram explorar. Ora, se o anime pode ser analisado como obra distinta do material original, é justo tentar fazer o mesmo com a adaptação live-action dirigida por Rupert Sanders.
Egresso do mercado publicitário, o cineasta inglês se sai bem no aspecto visual. Sua ambientação de uma metrópole anônima em um futuro distópico ecoa Blade Runner (1982) e o anime Akira (1988) — algo natural, já que ambos são modelos da estética cyberpunk —, mas oferece algum frescor. O mesmo pode ser dito do design de personagens, em especial, as ameaçadoras gueixas-robôs. Já as sequências de ação, apesar de bem executadas tecnicamente, carecem desse toque de originalidade — uma exceção é a empolgante luta na boate (pole fighting?).

Scarlett Johansson, aliás, se firma como heroína chutadora de bundas. Além da desenvoltura nas peripécias atléticas, do carisma e do sex appeal, a atriz tem talento dramático suficiente para conferir profundidade às personagens que interpreta — caso da Major Mira Killian, em A Vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell. Primeiro exemplar de ciborgue com corpo inteiramente mecânico e cérebro humano, desenvolvido pela megacorporação Hanka, ela integra o Setor 9, organização governamental de combate ao crime. Os questionamentos que carrega a respeito de seu passado e de sua própria razão de ser se intensificam quando uma missão a coloca no caminho de um cibercriminoso conhecido como Kuze (Michael Pitt).
Aqueles familiarizados com o mangá e/ou o anime vão notar a mudança no nome da protagonista — originalmente, ele se chama Motoko Kusanagi. Não se trata apenas de uma forma de justificar o casting de uma branca no papel de uma japonesa. Essa alteração está diretamente relacionada à origem da Major no filme (e isso é tudo o que pode ser dito a respeito sem soltar spoilers).
Em tempo: a discussão sobre whitewashing — a prática, comum em Hollywood, de escalar atores caucasianos para interpretar personagens de outras etnias — é válida, mas talvez pouco relevante neste caso. Sim, causa alguma estranheza ver, por exemplo, o dinamarquês Pilou Asbæk como Batou, o integrante do Setor 9 mais próximo da Major. Só que esse grupo conta ainda com o singapurense Chin Han como Togusa, o australiano de ascendência fijiana Lasarus Ratuere como Ishikawa e a inglesa de ascendência curda e polonesa Danusia Samal como Ladriya. Seria de se esperar tal diversidade racial em um mundo ainda mais globalizado do que o presente. Ademais, nesse cenário, a presença de Takeshi Kitano como Aramaki, o chefe do Setor 9, falando exclusivamente em japonês, se torna ainda mais imponente. É dele, aliás, um dos momentos mais badass do longa.

O principal defeito de A Vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell não está no suposto “embranquecimento” do elenco, e sim no motivo que levou à escolha de Johansson para o papel principal: a necessidade mercadológica de dialogar com um público maior.
Com o intuito de tornar tudo mais acessível, o roteiro de Jamie Moss, William Wheeler e Ehren Kruger simplifica a maioria das questões do material original — as discussões filosóficas e políticas presentes tanto no mangá quanto no anime dão lugar a uma convencional jornada de aceitação, eliminando, assim, toda sua singularidade. A passagem mais emblemática disso ocorre logo no início, quando a dra. Ouelet (Juliette Binoche) deixa tudo mastigadinho e diz à Major que ela não é apenas uma casca (shell), que ela também possui uma alma (ghost) — o que pode satisfazer o grande público, mas acaba com a sutileza do título e sua referência à frase “the ghost in the machine”, cunhada pelo filósofo britânico Gilbert Ryle.
No fim das contas, o dilema do filme é o mesmo de sua protagonista: a identidade. Nesse sentido, o pensamento que abre este texto é uma espécie de resposta à fala do Mestre dos Fantoches no anime: “A memória não pode ser definida, mas ela define a humanidade”.
Qual dos lados está certo? Depende da perspectiva.