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Duna | Crítica
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Duna | Crítica

Fiel porém inventiva, nova adaptação do livro é bem orquestrada e visualmente impressionante

Daniel John Furuno
Daniel John Furuno
20.out.21 às 11h54
Atualizado há mais de 1 ano
Duna | Crítica

“Em música, [o estilo de composição chamado] fuga geralmente se baseia em um único tema, executado de muitas maneiras diferentes. Às vezes, há vozes livres fazendo danças elaboradas ao redor dele. Pode haver temas secundários e contrastes em harmonia, ritmo e melodia. A partir do momento em que uma voz introduz o tema principal, no entanto, tudo é entrelaçado em um só tecido”, escreveu Frank Herbert (1920-1986) em artigo publicado em 1980 na revista de ficção científica Omni.

Na ocasião, o escritor norte-americano usou essa metáfora musical para explicar a estrutura narrativa criada por ele em Duna. Na fuga de Herbert, a jornada de Paul é o tema principal, em torno do qual se desenrolam variações e contrapontos: a rivalidade entre os Atreides e os Harkonnen e o envolvimento dessas famílias de nobres nas maquinações políticas do imperador; a influência das Bene Gesserit, ordem mística que age nos bastidores para ditar os rumos do universo; a disputa pelo controle de Arrakis, lar da especiaria mélange, que possibilita a viagem interplanetária; o papel dos Fremen, os povos nativos de Arrakis, que conhecem como ninguém os caminhos do deserto e, portanto, são peça fundamental nesse jogo de poder.

Da mesma forma, do ponto de vista da análise literária, a desconstrução do mito e a intenção do autor de discutir os perigos representados por figuras messiânicas em nossa sociedade formam o eixo central da leitura. Nele, se entremeiam outros tópicos e suas possíveis interpretações, dependendo do recorte feito: ecologia, religião, orientalismo, imperialismo e a importância do petróleo na era industrial.

Se ampliarmos a metáfora e considerarmos o próprio livro como tema principal de uma fuga, podemos enxergar suas adaptações cinematográficas como outras vozes: elas não concorrem, apenas contrastam em harmonia, ritmo e melodia. A malograda tentativa do chileno Alejandro Jodorowsky, nos anos 1970, buscou uma visão mais espiritual e psicodélica. Já a versão lançada pelo norte-americano David Lynch em 1984 se concentrou nos aspectos mais extravagantes e polifônicos da fonte.

Nesse sentido, o longa-metragem que chega agora às telonas segue à risca a partitura. Em vez de recorrer aos improvisos um tanto caóticos de seus antecessores, o canadense Denis Villeneuve prefere criar contraste ao executar uma melodia quase idêntica à original, só que em outro tom – o que aqui significa explorar as diferenças de mídia.

Fora a ordenação de cenas no início e algumas mudanças discretas, o roteiro assinado pelo próprio diretor, em parceria com Jon Spaihts e Eric Roth, cobre praticamente metade do romance com bastante fidelidade. Na trama, os Atreides são apontados pelo imperador como novos administradores de Arrakis. Isso representa uma oportunidade, pois é de lá que vem a substância mais valiosa do universo, a especiaria mélange. Mas é também uma ameaça, já que os Harkonnen, antigos governantes do planeta, não abrirão mão de sua fonte de riqueza.

Ciente do desafio, o duque Leto (Oscar Isaac), patriarca dos Atreides, pretende arrebanhar o apoio do povo local, os Fremen. Ao mesmo tempo, o jovem Paul (Timothée Chalamet), filho do duque, anda tendo sonhos premonitórios, que preocupam sua mãe, lady Jéssica (Rebecca Ferguson), integrante das Bene Gesserit. Esse, afinal, é um indicativo de que o garoto pode ser o Kwisatz Haderach profetizado pela ordem: um messias poderoso, capaz de dominar o espaço e o tempo.

Além do roteiro, o design de produção se destaca – Villeneuve e sua equipe conseguem expandir de modo inventivo alguns elementos sugeridos no livro. Herbert claramente se inspirou no Oriente Médio para criar Arrakis; no filme, isso se reflete em todo o visual, do figurino aos cenários. Em Arrakina, capital do planeta, os prédios têm formato reminiscente dos zigurates, as pirâmides mesopotâmicas, com janelas que lembram o muxarabi (estrutura típica da arquitetura árabe, desenhada para favorecer a ventilação) e enormes painéis que são fechados durante o dia para bloquear o calor.

O diretor ainda consegue traduzir com eficácia conceitos como a Voz, uma técnica usada pelas Bene Gesserit para forçar outros a obedecer aos seus comandos – ela é representada como um áudio amplificado e levemente distorcido, que silencia todo o resto. Outro exemplo: como não há tempo para mencionar que Thufir Hawat (Stephen McKinley Henderson), assistente dos Atreides, é um Mentat, muito menos explicar que se trata de uma espécie de computador humano, a solução é mostrá-lo fazendo rapidamente um cálculo complicado enquanto seus olhos ficam brancos – o bastante para sugerir um dom especial.

A predileção do cineasta por brincar com escalas e proporções – vista em suas incursões anteriores pela ficção científica, A Chegada (2016) e Blade Runner 2049 (2017) – também se faz presente em Duna. Em determinada cena, uma gigantesca nave-cargueiro paira na órbita de Arrakis; os pequenos transportes que desembarcam dela remetem a esporos, prontos para fecundar o planeta inóspito. Já uma sequência de batalha filmada à distância, com os soldados reduzidos a uma massa uniforme, é enriquecida pela maneira como Villeneuve escolheu retratar os escudos usados pelos Atreides: o campo de força pessoal é um brilho azul que se torna vermelho quando atingido.

Assinada por Hans Zimmer, a trilha sonora é mais um ponto forte. Boa parte dos arranjos privilegia a percussão, ressaltando o caráter tribal da sociedade futurista. Nas músicas relacionadas aos nobres, a cadência é marcada, aludindo ao seu perfil organizado e disciplinado, bem como ao martelador, ferramenta que faz sons repetitivos para atrair os famigerados vermes da areia. Por sua vez, as faixas relacionadas aos Fremen trazem ritmos soltos, que traduzem seu jeito de ser livre e fazem referência à sua estratégia de caminhar com passos irregulares e, assim, despistar os enormes monstros do deserto.

O elenco estelar é um capítulo à parte. A escolha da dupla principal se mostra certeira: Timothée Chalamet alia a petulância adolescente à vulnerabilidade de um jovem atirado em um cenário terrível e forçado a abraçar sua sina. Rebecca Ferguson confere peso dramático à mulher dividida entre o amor familiar e o dever de servir à religião. Ainda por cima, declama de modo convincente a litania da ordem, que inclui a célebre frase “o medo é o assassino da mente”.

Há aqueles que brilham mesmo em papéis menores. Basta um diálogo para Josh Brolin comunicar todo o amor e lealdade que seu Gurney Halleck nutre pelos Atreides, em especial por Paul. E mesmo com o rosto coberto por um véu, a veterana Charlotte Rampling é capaz de transmitir a severidade e a arrogância da Reverenda Madre Mohian, líder das Bene Gesserit.

Mas talvez o maior destaque seja Stellan Skarsgård, que dispensa caretas e usa somente o olhar e a inflexão de voz para transformar o barão Harkonnen em um vilão verdadeiramente cruel e ameaçador. A atuação do astro sueco se beneficia de outra escolha acertada de Villeneuve: aproveitando o fato de o personagem usar dispositivos que suspendem seu corpo e o fazem flutuar, o diretor filma os movimentos do barão com uma aura quase sobrenatural e, assim, intimidadora.

O único ponto negativo do longa, que nem chega a prejudicá-lo, possivelmente nem é de responsabilidade dos realizadores. A introdução na qual Chani (Zendaya) explana a situação dos Fremen sob o jugo dos Harkonnen e sua expectativa com relação aos novos dominadores tem todo o jeito de intervenção do estúdio: uma tentativa de dar tudo mastigado para o público. A medida, porém, se revela inútil: o prelúdio é totalmente dispensável, já que todas as informações ali narradas são logo depois apresentadas organicamente no enredo.

Por sinal, outra virtude do roteiro é conseguir integrar muito bem toda a parte de exposição à narrativa. Os detalhes relevantes sobre Arrakis, por exemplo, são exibidos em um bibliofilme (uma espécie de vídeo educativo) que Paul assiste logo que chega ao planeta – e que, de quebra, o ajuda a superar um perigo. O conflito entre as duas principais casas da nobreza é explicado em um diálogo entre o jovem e seu pai, em uma cena que ainda tem o propósito de aprofundar os personagens e seu relacionamento.

Tamanha complexidade de temas foi reconhecida por Frank Herbert no mencionado artigo sobre a gênese de Duna. O autor, porém, se recusou a dissecá-los. “Encontre suas próprias soluções. Não olhe para mim como seu líder”, escreveu.

Villeneuve, pelo jeito, seguiu o conselho. Sua interpretação da obra é um espetáculo bem regido e executado com técnica impecável. É reverente à melodia original, mas conta com inventividade suficiente para ser admirada por seus próprios méritos. Só resta aguardar o próximo movimento do concerto.


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