Esse texto não é uma crítica padrão: tem spoiler, tem descrições, análises de alguns personagens e suas ações. Se já assistiu, esse é o seu lugar!
A segunda temporada de Stranger Things é a dose anual de aventura que precisamos, com todos os ingredientes necessários para nos tirar do mundo real por algumas horas, não só porque viajamos no tempo — com as incontáveis referências e o vislumbre de uma infância sem tanta tecnologia — mas também nos leva a outra dimensão (ops!).
Há outras séries de ficção e fantasia que nos transportam para outros lugares, mas não consigo lembrar de nenhuma com personagens tão carismáticos, afinal, todo mundo conhece alguém que faz piadas ruins e trocadilhos bestas, ou tem um amigo mais destemido, ou teve uma paixão frustrada/correspondida na adolescência, bateu a porta do quarto, fez algo escondido dos pais... É quase impossível não se identificar.
A nova temporada reutiliza elementos da primeira: Joyce Byers (Winona Ryder), mais uma vez, bagunça a casa toda para solucionar um grande quebra-cabeça, há também a busca por paralelos do monstro real com um guia de RPG, e epifanias arrebatadores nos momentos cruciais da trama. Como são inseridos de maneira natural, não geram a sensação de repetição, preguiça ou comodismo por parte dos roteiristas — parece uma referência a ela mesma.
Em muitos momentos, os personagens fazem coisas que o espectador pode pensar: "isso é impossível!", "por que não espera ajuda?", "por que não volta de manhã?". Algumas soluções também se mostram simples para os mais atentos — embora só sejam colocadas em prática quase no finalzinho da série — e isso pode estragar a experiência para algumas pessoas... Contudo, Stranger Things é, acima de tudo, um apanhado de coisas que já conhecemos executadas de uma maneira envolvente e criativa. Soluções e ganchos narrativos típicos das boas e velhas aventuras dos anos 80 fazem parte da proposta da obra. Com isso em mente, é possível relevar algumas decisões (que se tornaram "imperdoáveis" para alguns fãs)... Ninguém destrincha ou questiona a verossimilhança de Os Goonies, Indiana Jones, E.T., por exemplo.
Novos personagens e o tal "episódio 7"
Stranger Things 2 introduziu novos personagens interessantes, como Sam Owens (Paul Reiser), o novo médico que assume o lugar de Dr. Martin Brenner (Matthew Modine), para resolver os problemas causados pelo antigo chefe do laboratório. Dr. Owens se importa um pouco mais com as pessoas, embora tenha ameaçado, de forma velada, "silenciar" Nancy Wheeler (Natalia Dyer) e Jonathan Byers (Charlie Heaton), se preciso. Esse dilema de conduzir um laboratório secreto, "fazer o que tem que ser feito", e, ao mesmo tempo, tentar não machucar as pessoas foi bem-vindo (diferente de Brenner, que era puro mal).
Max Mayfield (Sadie Sink), Madmax, tem uma personalidade diferente das outras crianças, complementa bem o grupo e o possível sexteto (?) da próxima temporada. Billy Hargrove (Dacre Montgomery), o meio-irmão dela, é apresentado como o típico bad boy, protagonizando todos os clichês possíveis do título ao longo da temporada. Mesmo com uma boa explicação para suas atitudes, o núcleo do personagem destoou do restante da série.
Falando em sair do tom, chegamos a Kali (Linnea Berthelsen), a número oito, "irmã" de Eleven, que inicia a temporada (literalmente) de maneira espetacular, junto ao grupo de criminosos comuns (até aquele momento) A pulga fica atrás da orelha até o episódio 7, criticado pelos fãs, porém necessário: expande o universo da série, é importante para Eleven entender um pouco mais sobre ela mesma, cria novas questões para o futuro e ainda nos mostra que outro monstro, Dr. Brenner, ainda está presente.
Bob Newby (Sean Astin), que eu achava que teria algo mais, não tem. É mesmo só um cara muito legal, do início ao fim, o típico nerd impopular na escola realizando o sonho de ficar com a garota incrível que sempre quis e ser feliz para sempre. Murray Bauman (Brett Gelman) é obcecado por teorias da conspiração e um alívio para o clima de tensão geral — até a trilha sonora muda quando ele está em cena. É também um personagem que já vimos em outras obras, absorto em teorias aparentemente malucas, aquele que vê "atrás das cortinas", mas ele ajuda a resolver duas questões de uma vez só: o destino do laboratório e outra coisa (que já estava na hora)!
Dustin, Will e Hopper
Essa foi a temporada de Jim Hopper (David Harbour), o personagem que resolve (ponto), entra nos túneis, quase morre (mas volta para pegar o chapéu), peita o laboratório, acalma as crianças (do jeito dele), cuida da Eleven, e ainda atende aos chamados normais da cidade. Ele mesmo diz para Joyce, "se tiver algum problema, me ligue antes". E é o típico anti-herói amargurado — que era beberrão, duro, mas com coração grande —, que tem que fazer parte de uma história como essa, já que a brincadeira é usar todos os arquétipos que conhecemos, né?
Stranger Things 2 se passa quase um ano depois dos eventos da primeira temporada e demonstrar que os efeitos de tudo o que aconteceu continuam com toda força foi uma ótima escolha, abrindo espaço para Will Byers (Noah Schnapp) se destacar — o ator conseguiu passar o sofrimento da experiência traumática (e também de sofre com bullying) e o medo extremo de lidar, dentro de si, com um ser que só existe para matar. Ainda entre as crianças, Dustin Henderson (Gaten Matarazzo) se mostra apenas uma criança comum, com piadas fora de hora, uma paixão daquelas inexplicáveis e decisões malucas — sem falar na improvável, mas muito divertida, amizade com Steve Harrington (Joe Keery): outro que brilhou nessa temporada (com direito até a reflexões sobre desilusões amorosas!).
O último episódio é quando tudo acontece ao mesmo tempo, todos os eventos são concluídos, fechando a temporada de forma magnífica, ainda que os cenários das últimas cenas sejam: um simples baile escolar (cheio de beijinhos tímidos e um momento maravilhoso entre Dustin e Nancy) e um estacionamento, quando Jim e Joyce compartilham um cigarro (como em outros tempos mais tranquilos) ao som de The Police, lá no fundo... É quando a música começa a distorcer e a gente é lembrado que teremos uma próxima temporada, que o mal continua solto, e que teremos, portanto, nossa próxima dose de aventura.
Outra coisas:
- Eleven teve a já batida "liberação de poderes" por conta da raiva. Se a gente aceitar que a série é, como dito acima, um apanhado de coisas que já conhecemos, dá para relevar sem problemas. Mas que seria mais bacana uma solução criativa, diferente, seria...
- Joyce, a mãe protetora, para mim, continua incrível. Há quem ache a personagem interpretada de maneira exagerada, caras e bocas demais, mas, talvez eu reagisse da mesma maneira se meu filho fosse levado para outra dimensão.
- Há uma discrepância entre a primeira e segunda metade da temporada: os quatro primeiros episódios da série são muito melhores que os outros. Parecem feitos com mais cuidado, criando mais perguntas e respondendo a outras coisas antigas de uma vez em paralelo, num ritmo perfeito.
- Bob, coitado, tão bonzinho... Um personagem colocado para morrer, estava claro, porém, a maneira grotesca, praticamente comido vivo, me pegou de surpresa.
- A série abusou dos ganchos aos finais de cada episódio, "obrigando", praticamente, a maratonar. É um artificio meio pobre e Stranger Things não precisa disso, a história e os personagens já são interessantes. Mas, se é para escolher (pelo bem do bom-humor!), o melhor deles foi o Demo-dog comendo a gata. Demorei um tempo para recolocar o queixo no lugar. Menção honrosa para Will "engolindo" o monstro (também foi demais)!