A quarta temporada de Comic Book Men está estreando na AMC Brasil e para marcar o lançamento a equipe Jovem Nerd News teve a oportunidade de conversar com Kevin Smith, cineasta e apresentador do programa.
Falando com a gente, Smith falou sobre cultura nerd, seu roteiro para o filme do Superman que seria estrelado por Nicolas Cage, HQs raras e podcasts!
Jovem Nerd News: Há algum tempo, ser nerd era visto como algo "ruim", um estigma, éramos zoados na escola. Como você enxerga esse novo momento onde todos conhecem os Vingadores ou até mesmo o Doutor Estranho, que era um personagem obscuro até pouco tempo atrás?
Kevin Smith: Eu acho que isso aconteceu pela "Marvetização" da cultura pop, a Marvel e a DC Comics construíram um modelo perfeito para o entretenimento décadas atrás: a história em quadrinho curta. Vinte e poucas páginas recheadas com cores, ação, mistério, intriga e sempre episódica. A história acaba em uma edição e continua na próxima.
Esse formato foi feito há muito tempo e foi feito para crianças. E essas crianças cresceram amando essas histórias. Steven Spielberg e George Lucas cresceram lendo as histórias de Stan Lee e Jack Kirby e isso se reflete nos filmes que eles fizeram no final dos anos 70 e na década de 80.
Ninguém fazia filmes de super-heróis porque o cinema não conseguia traduzir a linguagem visual dos quadrinhos. Levou 50 anos de história do cinema e de avanço tecnológico para conseguirmos retratar o que aqueles artistas colocavam nas páginas. Por isso que temos filmes dos Vingadores. Por isso que conseguimos colocar Batman, Superman e Mulher-Maravilha em cena para lutarem contra o Apocalypse. Tudo que você pode sonhar. Na TV, você pode transformar o Flash na história épica que eles estão fazendo na série.
A tecnologia hoje permite que você capture a mesma essência imagética dos super-heróis que só era possível de ser vista em desenho. Isso faz com que as pessoas possam ver isso no cinema ou na TV e de repente isso virou a cultura e não mais algo marginalizado.
Hoje todos sabem sobre as coisas que só você e um pequeno grupo de amigos sabiam antigamente. É como ser fã de uma banda de garagem e ver eles partindo para uma turnê mundial. É a sensação dos caras que conheciam o Nirvana no começo dos anos 90 antes do Nirvana ser algo do mundo.
Como fã de quadrinhos, você gosta que isso seja parte do mundo. Porque o clube fechado nunca foi fechado por escolha, ninguém escolheu isso. As pessoas só não eram tão interessadas nessas histórias quanto você, você enxergava algo de especial nelas. E hoje essas pessoas que faziam parte desse clube fechado estão tomando as decisões na indústria e sabem que essas histórias são perfeitas para filmes ou séries de TV.
Pense nisso, as HQs do Flash estão completamente adaptadas na série de TV. Cada episódio é como se fosse uma edição da revista. Na TV elas funcionam perfeitamente. No cinema, você pode criar esses espetáculos visuais de batalhas do bem contra o mal. Então você cria uma cultura onde sua mãe vai ao cinema e diz "O Michael Douglas está no Homem-Formiga, ele é o Hank Pym" e isso pertence a todos. Ou o Doutor Estranho. Você sabe que ele é o Mago Supremo, que o Dormammu é um dos vilões e ele não é um personagem de primeiro escalão da Marvel, mas você faz um filme e coloca Benedict Cumberbatch e é um sucesso.
A Marvel faz isso há quase dez anos, desde o primeiro Homem de Ferro, eles transformam personagens pouco conhecidos em grandes sucessos. Eles abriram mão do Homem-Aranha e dos X-Men que estão em outros estúdios, mas todos conhecem o Homem de Ferro agora.
Mas ele nunca foi o mais conhecido, apesar de ter importância na história da editora. Eles têm de agradecer Jon Favreau por ter confiado em Robert Downey Jr. e dizer que ele era o cara perfeito. Essas escolhas transformam esses personagens no que eles são hoje.
Quando eu estava crescendo, a febre por esportes era algo absurdo. Você poderia ter uma carreira nos esportes e eu ficava "Isso é só um jogo!". Mas é a mesma coisa no fim das contas, pessoas se divertindo. Pensa nisso: super-heróis usam máscaras, atletas usam máscaras; você tem roupas coloridas e o confronto de dois lados opostos. É tudo a mesma coisa. Só diversão. Hoje vivemos num mundo onde um fã de quadrinhos é tão popular quanto um fã de esportes.
E hoje temos programas como Comic Book Men onde tudo que fazemos é sentar numa mesa e falarmos de quadrinhos e não parecemos um bando de velhos saudosistas porque de repente as coisas que gostávamos trinta anos atrás hoje são coisas que todos gostam. Nós gostávamos dos Vingadores e agora temos filmes dos Vingadores. Gostávamos do Batman e agora temos filmes do Batman.
É estranho, mas é legal, somos tão populares quanto os fãs de esportes.
No Comic Book Men temos muitos itens raros chegando na loja. Se você pudesse escolher um deles para a sua coleção pessoal, qual seria?
KS: Eu acho que nunca tivemos um desses entrando na loja, mas, estamos na sexta temporada atualmente e nessa temporada os meninos foram a um museu onde eles viram uma Action Comics #1, a primeira aparição do Superman.
Eu nunca colecionei coisas da Era de Ouro e da Era de Prata, eu gosto de ler a história. Eu já li a história da Action Comics #1, é ali que o gênero de super-heróis nasce. Eu nunca quis ter uma na minha coleção, elas sempre foram muito caras, mesmo quando eu era criança. Mas hoje, com 46 anos, se eu pudesse ter um item raro seria uma Action Comics #1, mesmo eu já tendo lido a história. Só porque eu percebo hoje que ela é uma ponte para a história.
Milhares de heróis e memórias surgem a partir dessa edição. O conceito de super-heróis. Não o conceito nazista de um super-homem, mas o conceito que todos conhecemos e amamos, onde alguém com talentos especiais vai usá-los para nos proteger e nos defender. Eles fazem o bem e o fazem sem querer nenhum crédito para isso e esse é o conceito do Superman.
É a porta de entrada para tudo. Stan Lee criou muitos super-heróis na Marvel, mas ele não teria feito isso se não fosse o que Joe Schuster e Jerry Siegel fizeram. Não teríamos o Batman sem Superman. Você não teria The Walking Dead se não fosse o Superman. Tudo começa lá, a história dos quadrinhos. Quando você compra uma Action Comics #1, não está só comprando uma edição histórica. Está comprando uma parte da vida de um menininho ou uma menininha que leram aquela história e isso acendeu algo na imaginação deles. Tudo que você ama, se você ama Star Wars, é por causa da Action Comics #1. Se você ama Indiana Jones, é por causa da Action Comics #1. Tudo que vemos hoje na cultura pop deriva do que foi feito na Action Comics #1.
Seu roteiro de Superman Lives é uma lenda entre os nerds e muitos fãs se perguntam se algum dia veremos essa história em um livro, um quadrinho, uma animação. Será que isso pode acontecer um dia?
KS: Seria incrível, eu amaria ver isso, principalmente porque fiz isso há duas décadas. Eu trabalhei nessa história em 1996 e agora estamos em 2016, então temos vinte anos. De vez em quando eu vejo um artigo falando "esse roteiro é mais ou menos o que a Marvel faz hoje, ele estava à frente de seu tempo". Teria sido legal fazer o filme, mas eu não sei, um dia eles podem transformar isso em um quadrinho ou numa animação como eles fizeram agora com Batman - O Retorno da Dupla Dinâmica com Adam West e Burt Ward, talvez uma animação com Nicolas Cage fazendo a voz do Superman e talvez assim nós soubéssemos como esse filme teria sido fantástico, mas eu não contaria com isso...
Uma coisa legal de Comic Book Men é que o público percebe que você e os outros não estão interpretando personagens nem nada e é como se estivéssemos vendo um grupo de amigos falar sobre quadrinhos. Trabalhar no Comic Book Men e na loja de quadrinhos é um sonho realizado?
KS: Com certeza. Abrir a loja já foi um sonho realizado. E foi um sonho que surgiu com Walter Flanagan [um dos apresentadores da série] há muito tempo. Eu comecei a sair com Walt em 1989 e ele era o meu guru dos quadrinhos. Eu gostava de quadrinhos, mas parei de lê-los no colegial porque isso não era legal na época e você era zoado e apanhava se estava lendo quadrinhos na escola. Mas Walter não se importava, ele sempre lia. Ele era um pouco mais velho do que eu, gostava de heavy metal e amava quadrinhos e ele sempre me dizia "Se você ama quadrinhos, fique firme com isso! Não é porque os outros não gostam que você não deve gostar. Ser popular não é sempre a melhor escolha. Isso não é só sobre quadrinhos, é sobre todos os outros aspectos da sua vida".
Então eu e Walt saíamos de Nova Jersey de carro e íamos até Nova York procurar alguns quadrinhos e ele sempre me falava de seu sonho de trabalhar em uma loja de quadrinhos. Eu queria ter uma e ele queria administrar. Então depois de O Balconista, Barrados no Shopping e Procura-se Amy a loja de quadrinhos que nós frequentávamos estava fechando e o dono ia se mudar para outro país e ele me fez uma oferta de me vender todos os produtos, o lugar e tudo o mais por US$30.000 e isso era apenas US$3.000 a mais do que eu usei para fazer O Balconista, que foi um filme que fez todos os meus sonhos virarem realidade, então eu pensei em transformar o sonho de Walt em realidade. Então eu comprei a loja e a rebatizei como Jay and Silent Bob's Secret Stash e falei "Walt, você vai administrar ela" e ele estava meio "Não, eu não vou" e ele não aceitou por dois anos, se mantendo no emprego antigo. Ele achou que não ia dar certo. Então Bryan Johnson [outro apresentador da série] foi gerente por esse tempo. Walt fazia os pedidos, mas nunca gerenciou nada. Então só depois de dois anos ele veio trabalhar na loja em tempo integral.
Então, eu conheço Walter desde sempre e todas as minhas memórias em relação a quadrinhos estão ligadas a ele e o fato de nós termos a oportunidade de sentarmos numa mesa e falarmos sobre quadrinhos na TV, termos as mesmas conversas que temos há 30 anos, fazendo a mesma coisa que fazemos há tanto tempo é incrível, cara.
Eles te pagam pra isso! E você faria isso de graça! Nós fazíamos isso de graça antes. Sempre conversávamos sobre essas coisas. Então sim! É um sonho realizado. É um sonho realizado abrir uma loja de quadrinhos, é um sonho realizado que essa loja tenha o nome de personagens que eu criei.
A série não é um sonho realizado porque eu nunca tinha sonhado com isso. Um produtor veio falar comigo e disse que tinha conversado com a AMC e que eles queriam fazer um programa nerd para ser exibido logo depois de The Walking Dead, eles tinham medo desse público esquecer do canal já que a produção de The Walking Dead é demorada. É engraçado pensar que houve um tempo quando alguém tinha medo das pessoas não assistirem TWD, uma das séries mais assistidas no planeta.
Então, eles estavam procurando ideias para manter esse público no canal e acharam esse cara que conversou com uma antiga amiga minha que veio até mim e pediu ideias para um projeto e eu disse "Bem, eu não tenho muitas ideias para um reality show, mas se eu fosse eles eu faria um programa numa loja de quadrinhos. É barato, é fácil, essa audiência adoraria ver algo que espelhasse a realidade deles, algo como Trato Feito". Então a AMC gostou dessa ideia. E eles iam fazer uma busca nacional por uma loja de quadrinhos cujos funcionários eram engraçados. E a AMC ia nos dar US$10.000 para fazer isso e era muito pouco para uma busca nacional. Então eles nos falaram para filmarmos um piloto para terem uma ideia de como isso seria. O maior custo seria achar uma loja de quadrinhos e pagar os caras para fecharem a loja por um dia.
E então eu disse que tinha uma loja de quadrinhos e essa foi a primeira vez que eu mencionei esse fato em todas essas conversas na pré-produção do projeto. E eles ficaram sem entender e me perguntaram "Por que você não disse antes?" e eu estava meio "Eu não sei, achei que ia soar meio arrogante. Mas é, eu tenho uma loja de quadrinhos e os caras que trabalham lá têm um podcast chamado 'Tell'Em Steve Dave' e eles são muito engraçados".
Então filmamos esse piloto e na época eu nem estava pensando que o programa seria feito lá mesmo, eu iria usar a loja só para esse teste. E eles quiseram ouvir o podcast dos caras e o produtor me ligou de volta dizendo "Seu idiota de merda! Esse é o programa. Esses caras que trabalham na loja, parece que eles são casados há 30 anos" e ele quis conhecer os meninos e eu disse "Bem, você pode, mas eles não querem estar na TV" e o produtor ficou "Como assim, quem não quer estar na TV?" e eu disse "Esses caras, eles não querem estar na TV" e eu convenci Walt e Bryan a filmarem esse piloto e aqui estamos na sexta temporada, aí no Brasil vocês estão vendo a quarta.
Agora eles gostam, mas no começo eles não queriam, achavam que iam parecer idiotas e eu garanti que não, que ia ser legal e que teríamos as mesmas conversas que tínhamos há trinta anos. Enfim, você será pago para ser você mesmo na TV, sem personagens. E estamos fazendo isso há seis anos e é uma dádiva, eu não posso dizer que é um sonho realizado porque nunca nem sonhei com isso.
Eu nunca sonhei em fazer TV. Minto, eu sonhei em fazer um programa de esquetes de comédia com meus amigos há muito tempo quando eu era criança. Mas cá estamos, sentados numa roda e falando das coisas que sempre falamos e fazendo piadas com Batman e com o Homem-Aranha e isso é realmente fantástico.
Nos últimos anos, você ficou famoso pelos seus podcasts. Como você enxerga o podcast como um meio de se contar histórias?
KS: Bem, como toda mídia, o melhor jeito é começar do jeito mais fácil. Você pega seus amigos e vocês começam a conversar. É um programa de rádio. As pessoas pensam no podcast assim. E o podcast permite que as pessoas façam isso sem precisarem de uma emissora de rádio. É fácil, você senta e começa a contar histórias sobre coisas que vocês gostam, histórias da vida de vocês.
Então, desde a base da coisa, o podcast é uma forma de se contar histórias e essa é a forma mais antiga de se contar histórias, certo? Pessoas sentadas contando histórias uma para as outras e então a coisa evolui, uma hora você para de contar histórias de outras pessoas e passa a criar as suas próprias. Em um dos meus podcasts nós criamos cenários hipotéticos e contamos histórias a partir disso. E às vezes você pode pegar essas histórias e transformar em filmes, foi o que eu fiz em Tusk - A Transformação e Yoga Hosers, meus últimos dois filmes, pegamos histórias do podcast e transformamos em filmes.
Mas algumas pessoas estão indo um passo além disso, se o podcast é como o rádio, por que não retomar a época onde as pessoas faziam áudio-dramas e interpretavam personagens e colocavam efeitos sonoros? É como Serial, um podcast que conta uma história real sobre um assassinato e sobre uma acusação injusta e isso é o que deixa ele tão interessante.
Então é, o podcast é um ótimo meio para se contar histórias, é um programa de rádio que você carrega por aí, então você pode escrever um roteiro ou sentar com seus amigos e falar das coisas que você gosta como faziam antigamente. A beleza do podcast é essa, você não precisa ficar olhando para ele.
Você não pode assistir um filme enquanto dirige, mas você pode ouvir um podcast e é como se alguém estivesse do meu lado me contando uma história e o que é melhor do que isso? Traz de volta memórias de quando você era uma criança e seus pais contavam histórias para você.
Nós costumamos assistir as coisas porque vivemos num mundo visual, com a TV e a internet e o YouTube e estamos vendo coisas o tempo todo. Mas o rádio sempre está lá. Todo carro tem um rádio e ele vai para onde você vai. E o podcast é a mesma coisa, ele está onde você está e você não precisa ficar olhando para ele. Isso abre as possibilidades para todo mundo que quer contar uma história...
Comic Book Men é exibido todos os sábados e domingos ao meio-dia na AMC Brasil.