Poucos desenvolvedores e estúdios surgem na cabeça dos jogadores brasileiros quando pensam no mercado de games nacional.
No entanto, um passo pode ter sido dado para que isso mude e outros nomes ganhem força: o Programa Brasil de Todas as Telas, da Agência Nacional do Cinema (Ancine), que atua para regular o setor audiovisual no país, foi comemorado por desenvolvedores de todo o país ao divulgar a premiação com investimento total de R$ 10 milhões para diversos estúdios e seus projetos na última sexta-feira (5).
O edital contou com 23 estúdios vencedores, sendo que dois receberão R$ 1 milhão cada um, 13 contarão com um financiamento de R$ 500 mil e oito terão R$ 250 mil para completarem seus projetos.
É indiscutível que o investimento é valioso e pode colaborar muito para o desenvolvimento de games no Brasil, sem contar com a próxima edição do programa, que deve fortalecer ainda mais.
No entanto, como esta iniciativa pode realmente ajudar a mudar o cenário do país? Conversamos com alguns dos vencedores do edital, que contaram como este financiamento pode colaborar com seus projetos e possivelmente melhorar o mercado de games brasileiro.
Um pequeno grande passo
A iniciativa, sozinha, definitivamente não resolve todos os problemas que nossos profissionais encontram, mas pode ser justamente o que vários desenvolvedores precisam para se lançarem no mercado.
Eliana Russi, gerente executiva da Associação Brasileira das Empresas Desenvolvedoras de Jogos Digitais (Abragames) e do Projeto Brazilian Game Developers, falou sobre a iniciativa em um comunicado oficial:
O exemplo que a Ancine deu, colocando um valor de investimento de R$ 10 milhões logo no primeiro edital, e já anunciando o segundo edital, também de R$ 10 milhões, marca um momento histórico, é uma revolução na indústria de games do Brasil.
Para Saulo Camarotti, fundador e CEO da Behold Studios (Knights of Pen & Paper e Chroma Squad), que conseguiu a premiação de R$ 1 milhão, esse edital não é o bastante para mudar o cenário nacional, mas o dinheiro pode colaborar para que projetos nacionais sejam efetivamente lançados, o que poderia não ser o caso se o programa não existisse.
Isso é o bastante para que surjam mais jogos de qualidade. Ainda não vamos realizar os sonhos de muitos brasileiros de criarmos jogos AAA, até porque não é o objetivo de muitos dos desenvolvedores no Brasil. Mas com certeza o investimento vai ajudar a melhorar nosso alcance, nossa qualidade, e muitos desses projetos vão chegar ao fim. Só isso já é uma baita diferença.

Este é justamente o caso do projeto Arani, da Diorama Digital. O estúdio, que também é um dos premiados com R$ 1 milhão pela Ancine, terá a oportunidade de trabalhar em um projeto próprio, algo que não seria possível antes, segundo Everaldo Neto, diretor de arte.
Esse financiamento será fundamental para a produção do game. Somos uma empresa que presta serviços para empresas do exterior produtoras de jogos AAA, temos conhecimento técnico para tornar viável a produção, mas com recursos próprios seria inviável dar continuidade a este projeto.
A Diorama já trabalhou anteriormente fazendo material para jogos grandes internacionais, como o recente Horizon Zero Dawn. Com o apoio do edital, eles poderão trabalhar em seu próprio jogo.
Arani é um projeto nosso. Além de Horizon Zero Dawn, antes de formarmos a Diorama já tínhamos produzido material para outros títulos, como DC Universe Online, The Elder Scrolls Online, Just Cause 2, Monday Night Combat e Star Wars Galaxies, entre outros. Apesar disso, há muito tempo queríamos trabalhar em um jogo nosso e que trouxesse elementos da nossa mitologia, mas para um público um pouco mais hardcore. Com essa iniciativa da Ancine isso será possível.
Apesar da premiação, Neto afirma que a empresa ainda terá outra equipe que continuará desenvolvendo material terceirizado para outras empresas, trabalho pelo qual o estúdio já é conhecido, mas vai poder dedicar um time exclusivo para o novo jogo.

Outro estúdio que ganhou destaque nos últimos anos, em grande parte por conta do excelente Gryphon Knight Epic, é a Cyber Rhino Studios. Os desenvolvedores receberão R$ 250 mil para financiar Musashi X Cthulhu. O projeto de nome inusitado poderá ser ampliado graças ao prêmio, como conta Sandro Tomasetti, um dos fundadores.
Originalmente ele iria ser lançado apenas para mobile. Um jogo bem focado em Leaderboards, onde o jogador iria ficar tentando bater seu recorde várias e várias vezes. Agora poderemos adicionar história, habilidades e, muito importante para nós, chefões!
Tomasetti ainda adiciona que o edital “veio em boa hora”, destacando que esta é uma oportunidade para diversos tipos de desenvolvedores, tanto novos quanto veteranos.
O mercado brasileiro de jogos está cheio de gente muito boa só à espera de uma oportunidade. A iniciativa tanto vai ajudar as empresas que já lançaram algo, como a gente, a se manter forte para continuar trabalhando, quanto dar uma chance para o pessoal que está cheio de ideias novas. Golaço da Ancine.
Já para a Behold Studios, Camarotti diz que este dinheiro não apenas deve financiar o jogo, mas também permitirá criar uma obra própria, já que não terá a influência que uma publicadora costuma ter.
Este prêmio vai financiar quase todo o projeto, que vamos desenvolver na íntegra pelos próximos dois anos. Nossa equipe não crescerá, mas poderemos focar naquilo que acreditamos ser o melhor que podemos oferecer no momento, e esse foco vai com certeza nos ajudar a criar algo ainda melhor. Normalmente buscamos investimentos de publicadoras, tentando fazer negócios lá fora, mas saber que vamos começar um projeto já com esse apoio muda muita coisa, pois poderemos ser mais reais e autênticos com o que acreditamos.
Mesmo sendo uma iniciativa importante, Camarotti ainda afirma que é necessário ter o pé no chão para que os estúdios brasileiros possam aproveitar esta oportunidade da melhor forma. Para ele, dinheiro sozinho não é o bastante para fazer o mercado nacional crescer, sendo também essencial que os desenvolvedores busquem conhecimento e aprendam mais.
Já estamos caminhando neste crescimento. Todos os anos vemos novos lançamentos incríveis pelo Brasil. Mas ainda é uma indústria incipiente se comparada ao tamanho de mercado que somos. O desenvolvedor Brasileiro ainda precisa investir mais em qualidade, aprender a fazer jogos melhores, antes de se considerar um bom desenvolvedor. Saber que ainda sabemos pouco é fundamental para que andemos em uma direção de aprendizado. Só porque consumimos jogos de muita qualidade lá fora, e somos capazes de imaginar jogos ainda melhores, isso não nos coloca em uma posição qualificada de criar jogos melhores ou pelo menos iguais aos que jogamos.
Investimento que gera investimento
Mas como exatamente funciona o Programa Brasil de Todas as Telas? Inicialmente, podemos pensar que o dinheiro é apenas entregue para os estúdios para fazer um jogo, o que precisará ser comprovado de alguma forma. Mas o intuito do edital é fomentar nosso mercado e isso é feito como consequência do investimento.
“A gente está matando um leão por dia há mais de uma década, tentando fazer acontecer, mas eu e outros da cena já vínhamos falando há tempos que faltava dinheiro para injetar nos projetos nascentes do Brasil”, comentou Marcos Venturelli, produtor da Behold Studios.
De acordo com Venturelli, o projeto não apenas melhora a produção dos jogos nacionais, como também colabora gerando empregos e ajudando pessoas que desejam trabalhar.
Até agora, o dinheiro, na maior parte, vinha de fora. E ficava fora também. Acho que a Ancine está sendo visionária em entender que existe um motivo pelo qual países como Canadá, Alemanha, Suécia etc. investem em suas indústrias locais. E acho que vai ser muito lucrativo para todo mundo: para a economia do país, para os desenvolvedores, para os jovens que sonham em trabalhar com games sem ter que sair do Brasil, para os jogadores que querem ver o trabalho brasileiro em pé de igualdade com os estrangeiros.

Um ponto de vista compartilhado por Everaldo Neto, que também destaca a comum busca por um trabalho no ramo fora do país.
[O Programa] possibilita a produção dos títulos nacionais, gera empregos, e ajuda a movimentar o mercado de desenvolvimento independente no Brasil, que apesar de ter títulos de sucesso lançados em grandes plataformas, tem potencial para muito mais. Temos excelentes profissionais da área de desenvolvimento de jogos que, na maioria das vezes, por falta de oportunidades, precisam se mudar para outros países onde esse tipo de mercado já é consolidado.
Em outras palavras, é justamente no processo de criar o jogo que a iniciativa colabora com a indústria nacional, mais do que simplesmente o seu lançamento. No entanto, o sucesso dos jogos também é fundamental para que o Programa tenha continuidade.
O motivo disso é porque títulos que se saírem bem no mercado colaborarão para que novos investimentos aconteçam. Neto explica que “o valor investido deve ser reembolsado de acordo com o retorno financeiro que o jogo terá, assim tornando possível o financiamento de novos projetos em novos editais”.
Quando os jogos forem lançados, parte do valor de sua venda retornará para a Ancine. Este reembolso será de 40% a 80%, com muitas variáveis, como explica o trecho "10.3.3" do edital. Consequentemente, este valor possivelmente colaborará para financiar novas edições do programa.
Desta forma, o sucesso dos jogos financiados não é apenas do interesse de seus respectivos estúdios e da Ancine, mas também de todos os desenvolvedores e jogadores brasileiros, já que podem colaborar para o crescimento do mercado nacional de diversas maneiras.
Prestação de contas
Para garantir que o dinheiro será utilizado da forma correta, a Ancine exige que todo valor gasto seja comprovado e reportado, como explica Camarotti. Os desenvolvedores terão um ano para completarem seu jogo, sendo possível estender este período em alguns casos.
Os valores recebidos são rubricados em um projeto financeiro. Eles podem ser usados apenas para a produção do jogo, pagando equipe principalmente. Ao longo de 12 meses temos que lançar o jogo, mas podemos estender depois uma etapa de pós-produção, incluindo expansões e DLCs. Isso vai de cada jogo. Todo recurso usado tem que ser comprovado, então exige experiência para criarmos um bom projeto financeiro para usar adequadamente o dinheiro do FSA (Fundo Setorial do Audiovisual).
"No meio do ano que vem o mercado brasileiro já estará colhendo os frutos desta aposta que está sendo feita”, diz Venturelli. E um segundo edital já foi anunciado.
Mais do que isso, se tudo der certo, estes podem ser apenas os primeiros projetos nacionais que darão início a uma nova fase para o cenário independente e para o próprio mercado de games no Brasil.
Dedos cruzados.