Com videogames lentamente se tornando a nova tendência de Hollywood, o cinema e a TV não se contentaram só com adaptações. As entranhas dessa indústria tão enigmática, que normalmente opera longe dos olhos do público, também serão muito bem aproveitadas nas telas. Tetris é um primeiro passo nessa direção - mas um bastante fora do comum.
Há uma mística por trás do surgimento do game. Sua origem na União Soviética no início da década de 1980, auge da Guerra Fria, pede por uma espiada por trás da cortina de ferro. O que inspirou Alexey Pajitnov a programar em uma máquina rudimentar o que viria a ser um dos maiores jogos da história? Se essa é sua dúvida, é especialmente curioso que o filme simplesmente atravessa por tudo isso em apenas 10 minutos.
De início, o longa confunde sobre o que realmente quer abordar. A origem de Tetris é desmistificada em uma narração rápida, e aqui não só o jogo já existe como também já conseguiu atravessar da URSS para os Estados Unidos, com acordos de distribuição mundial em andamento. Não é uma história sobre como um clássico é criado, ou mesmo seu rápido avanço pelo mundo. Ao invés disso, é um conto sobre… burocracia.
Bloco soviético

O problema surge quando percebe que não foi o único a sentir o cheiro do dinheiro, e logo se vê arrastado à uma guerra pelos direitos de publicação do título, envolvendo grandes corporações e até oficiais corruptos do governo russo.
É uma decisão bastante curiosa, que soa especialmente bizarra nos momentos iniciais, quando Rogers resume momentos cruciais da história de Tetris, em montagens que combinam o estilo dinâmico de Adam McKay (A Grande Aposta, Não Olhe para Cima) com ilustrações gamísticas que parecem saídas direto de um ensaio no YouTube. Mais curioso ainda é ver tanta coisa sendo agrupada quando o longa ainda tem quase duas horas de duração.

Ver Rogers perigando uma viagem só de ida para a gulag e sendo perseguido por vilões russos que mais parecem saídos de um 007 dão uma aura caricata que só amplifica a bizarrice do longa. Não que seja uma retratação preguiçosa, chegando até a impressionar pelos ambientes altamente detalhados e por grande parte do elenco realmente ser eslavo, com extensas sequências faladas em russo ao invés de inglês com sotaque tosco. Mas ainda é tudo bem questionável e brega.
Em um dos momentos mais cafonas, por exemplo, o executivo descobre que Pajitnov não está lucrando um centavo com o sucesso de Tetris, apesar do game ser peça central de acordos milionários. “Isso é criminoso!”, ele exclama. “Não, isso é comunismo”, replica o criador. Se bobear, dá até para ouvir a “águia da liberdade” sobrevoando ao fundo.
Tudo se encaixa

Por baixo de seu humor quase Macarthista, há sim um interessante conto de capitalismo voraz se impregnando em um império comunista em declínio, em que a corrupção, o individualismo e ganância começam a ganhar espaço como se fossem uma nova moda. Mas o que realmente faz um filme sobre burocracia gamística funcionar é o talento de Taron Egerton.
De Kingsman à Rocketman, o ator britânico já demonstrou talento para o humor, ação e para o drama. Aqui, o papel pede um pouco de tudo enquanto interpreta Rogers como um pilantra de bom coração, se é que isso é possível. Egerton canaliza seu melhor “Leonardo DiCaprio em O Lobo de Wall Street”, e manifesta o executivo como alguém que não só reconhece o poder cultural de uma grande obra ao ganhar o mundo, mas também as enormes pilhas de dinheiro que vai tirar disso tudo. É um personagem que te convence a torcer por ele, ao invés de ganhar seu apoio naturalmente.
Seus oponentes também fazem trabalhos admiráveis. Anthony Boyle acerta em cheio com Kevin Maxwell, um nepobaby milionário que acredita ser capaz de comprar qualquer um. O excelente Toby Jones se destaca com um Robert Stein que parece inofensivo, mas é cheio de esquemas misteriosos para passar a perna nos demais. Os melhores momentos do longa são quando o trio está em conflito, mediado pelo firme Nikolai Belikov, diretor da estatal de tecnologia russa vivido por Oleg Stefan.
Outro acerto é a direção de Jon S. Baird (Filth, Stan e Ollie), que contrasta o tédio da temática com bastante dinamismo. Não é exatamente o tipo de filme em que você espera por perseguições de carro e mafiosos ameaçando as famílias de inocentes, mas isso ajuda a tornar tudo mais chamativo. Assim como em longas que dramatizam o trabalho jornalístico, o desafio é tornar o assunto em algo sedutor e envolvente, mesmo que isso se distancie um pouco da realidade em que se baseia.
Vez ou outra, o cineasta apela para inserções de gráficos pixelados, para lembrar o público que ainda se trata de uma história de videogame. É um pouco bobo, sim, mas nada desagradável ou tosco. Muito pelo contrário, ajuda a colocar em perspectiva como essa mídia, tão associada com brincadeiras, hobbies e lazer, é construída de trabalho real, papelada e reuniões tediosas.

Entre a trilha repleta de sintetizadores, brigas com a KGB e leituras dramáticas de contratos, Tetris definitivamente não é uma cinebiografia tradicional, mas é muito bem-vinda. Vai te ensinar algo sobre a criação do lendário jogo? Talvez não muito, mas serve como exploração de uma anedota que ajuda a engrandecer sua impressionante história como um todo.
Honestamente, isso é algo bom. Claro, o filme não é perfeito, especialmente por sua retratação absurdamente caricata da União Soviética, mas talvez seja o tipo de coisa que os videogames precisam para se firmar de vez no mainstream. Diferente do cinema e da TV, os bastidores dos jogos são elusivos, feitos em segredo por anos e repletos de vai-e-vens burocráticos que não são dos mais empolgantes.
Contos como esse, por mais que sejam exagerações de momentos reais, ainda ajudam a demonstrar ao grande público facetas e funções menos conhecidas da criação de videogames. Mesmo glamourizado e com gostinho de suspense de espionagem, todo vislumbre por trás das cortinas é válido e intrigante.
Tetris já está disponível no catálogo do Apple TV+.