Logo do Jovem Nerd
PodcastsVídeos
Medusa choca e tropeça com distopia conservadora religiosa | Crítica
Filmes

Medusa choca e tropeça com distopia conservadora religiosa | Crítica

Segundo filme de Anita Rocha da Silveira é repleto de boas ideias e momentos marcantes espaçados por tediosa falta de foco

Arthur Eloi
Arthur Eloi
27.abr.23 às 14h01
Atualizado há mais de 1 ano
Medusa choca e tropeça com distopia conservadora religiosa | Crítica
Medusa/Divulgação

Uma jovem anda apressada pelas ruas da cidade, e logo fica evidente que está sendo seguida. As agressoras nada mais são do que um grupo de mulheres mascaradas, que rendem a vítima sem muito esforço. A jovem é espancada, ofendida de “piranha pecadora”, e ainda humilhada ao ter que gravar um depoimento em vídeo.

Você promete aceitar Jesus no seu coração, e se tornar uma mulher devota, recatada e submissa ao Senhor?”, pergunta a líder da gangue, enquanto outra grava com o celular, de flash acesso. Quando a violência chega ao fim, o grupo caminha tranquilamente pela noite ao som de Siouxsie and the Banshees.

Essa intensa abertura dá o tom de Medusa, novo filme de Anita Rocha da Silveira (Mate-me Por Favor) que busca destrinchar as incoerências e hipocrisias de uma realidade conservadora evangélica à brasileira. É uma pena que o longa raramente atinge o mesmo poder de seus momentos iniciais.

A trama mergulha em uma cidade onde o fervor religioso é lei, e segue a já citada gangue composta por mulheres bastante ativas na igreja. De dia, elas cantam músicas, pregam e cuidam de suas aparências. Nas noites, saem pelas ruas em busca daquelas que julgam ser pecadoras. Nessa realidade tenebrosa em que a instituição é uma força onipresente, que anda de mãos dadas com a política e tem até mesmo sua própria força policial, o que acontece quando uma dessas mulheres passa a entender que é tão vítima quanto àquelas que persegue, julga e agride?

Tudo se desenrola pela perspectiva de Mariana (Mari Oliveira), uma jovem que vive e respira a igreja em seu momento de devoção, lazer e cotidiano. Seu grupo de amigas é do mesmo ambiente e contexto, e sua vida na cidade é bastante agradável. Tudo isso vai por água abaixo ao ter seu rosto ferido durante uma das caçadas noturnas. Basta uma cicatriz em seu rosto para ela passar a ser mal vista por todos ao seu redor, colocando em xeque tudo aquilo que tinha como verdade.

 

Como jovem que se desilude com sua realidade perfeita, Mari Oliveira é destaque de Medusa [Créditos: Divulgação]
O argumento de Medusa é forte, e explora o lado obscuro da doutrina religiosa. Aqui, a fachada da vida “biblicamente perfeita” esconde uma sociedade machista, violenta e hipócrita. O dedo que aponta para os outros serve apenas para distrair de uma vida tão pecaminosa quanto as que abominam, ou então repleta de injustiças que são normalizadas e justificadas como partes de algo maior. Muitas das personagens são detestáveis, mas o longa garante que todas têm um grito entalado na garganta. Como uma bomba, é só questão de tempo até que elas explodam.

O problema está no caminho que utiliza para chegar à catártica conclusão. Mesmo que seja pensado para oscilar entre o horror e a comédia do absurdo, o filme se arrasta de forma tediosa, e transita tão bruscamente entre os gêneros que perde a força gradualmente. Não se trata de um erro, mas sim o estilo de Anita Rocha da Silveira.

A cineasta é ótima em estabelecer universos intrigantes e conflitos pesados, mas tropeça em transmiti-los de forma que faça jus à grandiosidade e ousadia de seu argumento. Silvera tenta abordar suas ideias com uma pegada Lynchiana, deixando que a bizarrice de seu mundo incite reflexões e paralelos no espectador, mas um certo desinteresse em criar personagens multidimensionais faz com que esses momentos atrapalhem o ritmo e desviem a atenção das viradas mais interessantes do longa. O mesmo argumento, claro, pode ser dito de Mate-me Por Favor, ao ponto de que fica visível que a diretora está bastante confiante de sua linguagem, mesmo que não funcione para todos.

Excelente visual e elenco de Medusa ajudam a carregar o filme até em seus momentos mais tediosos [Créditos: Divulgação]
O texto de Anita Rocha da Silveira até pode ser questionado, mas sua habilidade na direção é inegável. A distopia religiosa de Medusa é conduzida com excelentes movimentos de câmera, ambientes cheios de personalidade, com visual banhado em doses iguais de neon e luz natural. Os dias parecem naturalmente agradáveis, repletos de sol e os figurinos coloridos das mulheres, e as noites são intensas e macabras, por ruas vazias e mal iluminadas. Nesse contraste, o filme soa até como uma versão de The Purge com toques de Pedro Almodóvar.

Existe muito talento em todos os departamentos. Além da direção, Mari Oliveira também conquista no papel de uma mulher em desilusão com a vida que julgava perfeita. Sua performance é marcante pelo choque, negação e insistência em tentar manter as aparências, e também pela eventual revolta de entender como sempre foi subjugada. O restante do elenco, em especial a “líder” Michelle (Lara Tremouroux), intensifica a jornada de Mari como protagonista com um grupo de amigas cheia de julgamentos, descaso e hipocrisia.

Mas a experiência de Medusa ainda é turbulenta. O longa apresenta um universo igualmente marcante e assustador, infelizmente inspirado pela realidade religiosa e política brasileira, mas não consegue desenvolver uma reflexão consistente por se deixar levar por uma excentricidade que é pouco impactante.

Talvez o objetivo não seja realmente discursar de forma coerente, mas sim cultivar no espectador a indignação ao ponto da vontade de gritar de raiva, tristeza e injustiça. Há catarse a ser encontrada aqui, mas é preciso aguentar muitas das decisões questionáveis do ritmo e roteiro da obra nessa busca.

Encontrou algum erro neste conteúdo?

Envie seu comentário

Veja mais

Utilizamos cookies e tecnologias semelhantes para melhorar a sua experiência em nossas plataformas, personalizar publicidade e recomendar conteúdo de seu interesse. Ao continuar navegando, você concorda com estas condições. Este site utiliza o Google Analytics para entender como os visitantes interagem com o conteúdo. O Google Analytics coleta dados como localização aproximada, páginas visitadas e duração da visita, de forma anonimizada.
Para mais informações, consulte nossa Política de Privacidade.
Capa do podcast

Saiba mais