Uma jovem anda apressada pelas ruas da cidade, e logo fica evidente que está sendo seguida. As agressoras nada mais são do que um grupo de mulheres mascaradas, que rendem a vítima sem muito esforço. A jovem é espancada, ofendida de “piranha pecadora”, e ainda humilhada ao ter que gravar um depoimento em vídeo.
“Você promete aceitar Jesus no seu coração, e se tornar uma mulher devota, recatada e submissa ao Senhor?”, pergunta a líder da gangue, enquanto outra grava com o celular, de flash acesso. Quando a violência chega ao fim, o grupo caminha tranquilamente pela noite ao som de Siouxsie and the Banshees.
Essa intensa abertura dá o tom de Medusa, novo filme de Anita Rocha da Silveira (Mate-me Por Favor) que busca destrinchar as incoerências e hipocrisias de uma realidade conservadora evangélica à brasileira. É uma pena que o longa raramente atinge o mesmo poder de seus momentos iniciais.
A trama mergulha em uma cidade onde o fervor religioso é lei, e segue a já citada gangue composta por mulheres bastante ativas na igreja. De dia, elas cantam músicas, pregam e cuidam de suas aparências. Nas noites, saem pelas ruas em busca daquelas que julgam ser pecadoras. Nessa realidade tenebrosa em que a instituição é uma força onipresente, que anda de mãos dadas com a política e tem até mesmo sua própria força policial, o que acontece quando uma dessas mulheres passa a entender que é tão vítima quanto àquelas que persegue, julga e agride?
Tudo se desenrola pela perspectiva de Mariana (Mari Oliveira), uma jovem que vive e respira a igreja em seu momento de devoção, lazer e cotidiano. Seu grupo de amigas é do mesmo ambiente e contexto, e sua vida na cidade é bastante agradável. Tudo isso vai por água abaixo ao ter seu rosto ferido durante uma das caçadas noturnas. Basta uma cicatriz em seu rosto para ela passar a ser mal vista por todos ao seu redor, colocando em xeque tudo aquilo que tinha como verdade.

O problema está no caminho que utiliza para chegar à catártica conclusão. Mesmo que seja pensado para oscilar entre o horror e a comédia do absurdo, o filme se arrasta de forma tediosa, e transita tão bruscamente entre os gêneros que perde a força gradualmente. Não se trata de um erro, mas sim o estilo de Anita Rocha da Silveira.
A cineasta é ótima em estabelecer universos intrigantes e conflitos pesados, mas tropeça em transmiti-los de forma que faça jus à grandiosidade e ousadia de seu argumento. Silvera tenta abordar suas ideias com uma pegada Lynchiana, deixando que a bizarrice de seu mundo incite reflexões e paralelos no espectador, mas um certo desinteresse em criar personagens multidimensionais faz com que esses momentos atrapalhem o ritmo e desviem a atenção das viradas mais interessantes do longa. O mesmo argumento, claro, pode ser dito de Mate-me Por Favor, ao ponto de que fica visível que a diretora está bastante confiante de sua linguagem, mesmo que não funcione para todos.

Existe muito talento em todos os departamentos. Além da direção, Mari Oliveira também conquista no papel de uma mulher em desilusão com a vida que julgava perfeita. Sua performance é marcante pelo choque, negação e insistência em tentar manter as aparências, e também pela eventual revolta de entender como sempre foi subjugada. O restante do elenco, em especial a “líder” Michelle (Lara Tremouroux), intensifica a jornada de Mari como protagonista com um grupo de amigas cheia de julgamentos, descaso e hipocrisia.
Mas a experiência de Medusa ainda é turbulenta. O longa apresenta um universo igualmente marcante e assustador, infelizmente inspirado pela realidade religiosa e política brasileira, mas não consegue desenvolver uma reflexão consistente por se deixar levar por uma excentricidade que é pouco impactante.
Talvez o objetivo não seja realmente discursar de forma coerente, mas sim cultivar no espectador a indignação ao ponto da vontade de gritar de raiva, tristeza e injustiça. Há catarse a ser encontrada aqui, mas é preciso aguentar muitas das decisões questionáveis do ritmo e roteiro da obra nessa busca.