O aclamado crítico americano Roger Ebert escreveu certa vez que as obras cinematográficas estão aí para “aprimorar a vida e conferir a ela a ilusão de forma e propósito”. Nesse sentido, poucas parecem tão aptas a cumprir o papel quanto o filme de esporte, aquele que se assume como parábola de exaltação ao triunfo humano sobre as adversidades.
Na maioria dos casos, os longas do gênero não miram apenas nos fãs da modalidade esportiva retratada — esta serve, antes, como pano de fundo para um conto inspirador de cunho universal e, portanto, destinado a uma audiência mais ampla. Assim, seu sucesso como narrativa depende mais das virtudes do herói e do apelo de sua jornada que da grandeza dos feitos em si.
Baseado em eventos reais, ocorridos na década de 1960, Ford vs Ferrari se mostra ciente da tarefa. Tanto que procura se concentrar nos dois personagens principais, o construtor americano Carroll Shelby (Matt Damon) e o piloto britânico Ken Miles (Christian Bale), contratados pela Ford para conquistar, em nome da companhia, as 24 Horas de Le Mans, célebre corrida disputada na França e, àquela altura, dominada pela italiana Ferrari.
O acerto dos roteiristas Jez Butterworth, John-Henry Butterworth e Jason Keller é justamente encarar o duelo do título como mero chamariz. Trata-se, afinal, do aspecto menos interessante da história. Aliás, o script não se furta a colocar a indústria no papel de vilã, pintando Enzo Ferrari (Remo Girone) e equipe como vaidosos e traiçoeiros, e Henry Ford II (Tracy Letts) e seus executivos como arrogantes, movidos a planilhas. Com isso, a dupla central precisa não somente superar as limitações pessoais e de suas máquinas, mas se manter fiel a seus princípios em meio aos ardis do sistema.
Ainda entre os pontos fortes, destacam-se a performance do elenco como um todo e o talento do diretor James Mangold para filmar as corridas, concebendo sequências impecáveis em termos de estética e, ao mesmo tempo, carregadas de dramaticidade. Algo que é valorizado pela edição de Michael McCusker e Andrew Buckland, indicada ao Oscar 2020, e pela fotografia de encher os olhos, assinada por Phedon Papamichael.
Todavia, o longa derrapa em elementos cruciais, capazes de alienar a audiência, especialmente a parcela que não comunga da paixão dos protagonistas pelo automobilismo. Por um lado, a busca de Miles pela “volta perfeita” pode ser assimilada mesmo por quem não ama velocidade, uma vez que permite ser extrapolada para qualquer meta particular. Além disso, ela conecta o piloto ao filho, Peter (Noah Jupe), em uma relação que o ancora e lhe traz complexidade. Em contrapartida, a dinâmica com a esposa, Mollie (Caitriona Balfe), embora tenha algum peso, acaba deslocada, pouco integrada ao enredo.
O filme também minimiza a questão da vida em constante risco — em determinado momento, há um acidente, e a subsequente preocupação de Peter é burocraticamente assinalada em duas passagens, sem que isso chegue a ser desenvolvido de modo apropriado.
Menos sorte tem Shelby, cujas motivações são parcamente exploradas. Ele tem uma fala pretensamente filosófica acerca da sensação de transcendência que se alcança “em 7.000 rpm”, bem como um discurso absolutamente genérico e frio ainda no primeiro ato. Nada que comova ou crie empatia.
Algumas boas chances de explorar o personagem são desperdiçadas. Mais notadamente, seu passado como piloto (o longa abre com sua vitória em Le Mans, em 1959) e sua aposentadoria forçada por motivos de saúde. Em certo trecho, um repórter insinua que ele abandonou as pistas por ter perdido a coragem, o que sugere um conflito interessante — a necessidade de provar algo para si mesmo —; contudo, a potencial subtrama é, mais uma vez, deixada de lado. No fim das contas, Shelby fica limitado à parceria com Miles, esta, sim, bem trabalhada.
Menores, mas também problemáticas são algumas outras questões envolvendo o roteiro, cuja estrutura se apoia demasiadamente nas fórmulas do filme de esporte, a ponto de se tornar previsível. E, a exemplo de outros blockbusters recentes, o longa peca pelo excesso de didatismo. Após uma negociação transcorrer diante dos olhos do público e uma manchete de jornal confirmá-la, é necessário que alguém diga o que acabou de acontecer? Quantas vezes é preciso explicar que um piloto que tem duas voltas de vantagem sobre o oponente deve ser ultrapassado duas vezes?
Considerando o time envolvido e o material no qual se baseia, Ford vs Ferrari poderia fazer mais do que aperfeiçoar a vida, elevando seu próprio gênero. Infelizmente, se contenta em ser só mais um.