Super-heróis, adaptações de livros e de videogames são tendências passageiras. Quem realmente manda em Hollywood, e muito além, é a propriedade intelectual, praticamente a religião moderna dos engravatados. Todo executivo quer botar as mãos em franquias estabelecidas e se beneficiar de bases de fãs já existentes para minimizar os riscos. Mas o que acontece quando trabalhar em uma franquia pouco interessa aos criativos envolvidos? Algo como Until Dawn - Noite de Terror.
“Adaptação” do game de terror da Supermassive, originalmente lançado para PlayStation 4 há uma década (e refeito para PS5 e PC desde então, claro), o filme é um bom exemplo da boa e velha safadeza corporativa, que pega carona em um título conhecido para entregar o mínimo o possível. No caso, um longa de terror altamente padrão e formulaico, ainda que com bons momentos.
Com personagens e ambientação totalmente diferentes do jogo original, Noite de Terror segue um grupo de jovens que vai a uma cidadezinha qualquer, do interior dos Estados Unidos, em busca da irmã desaparecida de Clover (Ella Rubin). Quando se refugiam da chuva em um prédio abandonado no meio da floresta, acabam entrando em um pesadelo: presos em um loop temporal a lá Dia da Marmota, com a noite recomeçando sempre que morrem. Assim, eles precisam encarar ameaças variadas, desvendar o que está acontecendo e sobreviver até o amanhecer para escapar.
Por mais que eu seja defensor da ideia de que adaptações não precisam se limitar a replicar o material-base, é fascinante como o filme de Until Dawn descaracteriza por completo o jogo. A própria premissa é virada do avesso. Se o game choca pela narrativa continuar independente de quem morrer, sendo o desafio justamente manter todos (ou a maioria) vivos até o amanhecer, o filme vai na contramão ao insistir na repetição inconsequente, como o constante ato de recarregar um save para evitar “erros”. Não que o longa precisasse replicar o jogo quadro-a-quadro, mas a abordagem oposta é, no mínimo, curiosa.
De conexões ao original, ficam apenas alguns monstros e O Analista, psiquiatra que aparecia entre os capítulos do game comentando as decisões do jogador, como um anfitrião macabro de um episódio de Além da Imaginação, deixando avisos sombrios e enigmáticos. Um acerto do filme é trazer de volta o ótimo Peter Stormare para o papel, mas ele é pouco utilizado por grande parte do longa, até eventualmente ser pego para protagonizar um desfecho batido e tedioso.
É difícil não sair do cinema com a sensação de que o roteirista Gary Dauberman já tinha esse roteiro pronto, jogado em alguma gaveta, e só depois o projeto ganhou a roupagem de Until Dawn, graças a uma Sony ambiciosa em aumentar a presença de suas franquias no cinema e TV após o sucesso de The Last of Us. A prática é comum em Hollywood, e não é exagero pensar que Dauberman resgatou algum rascunho recusado do universo de Invocação do Mal para o longa, tendo roteirizado 90% dos derivados da franquia de James Wan e até dirigido Annabelle 3 (2019). A fórmula é basicamente a mesma, e seguida à risca.
O que sobrevive em Noite de Terror?

O que sobra em uma adaptação que nada adapta? Um filme de terror como qualquer outro que, apesar da falta de alma, até é aproveitável e tem bons momentos. Isso se dá graças ao diretor David F. Sandberg, conhecido no terror por desarmar as bombas jogadas em seu colo. Por mais que não seja capaz de elevar os muitos roteiros duvidosos que pega, sua direção pelo menos é garantia de um padrão aceitável de qualidade.
Salvo por alguns ótimos curtas, o cineasta de Quando As Luzes Se Apagam e Annabelle 2: A Criação do Mal (e Shazam!, claro) nunca fez um horror verdadeiramente bom, mas seus filmes sempre são passáveis, com bons monstros, bom uso de silêncio e tensão, e pitadas de criatividade na direção. Until Dawn não é diferente, com Sandberg entregando momentos intensos e sustos decentes. Não é nada memorável, mas é satisfatório o bastante.
Se existe algo bom em um terror formulaico é o fato de que a fórmula é confortável ao espectador. Os personagens são esquecíveis, mas servem bem o bastante como vítimas. E há uma variedade boa de perigos variados para atormentá-los, de maníacos mascarados aos temidos Wendigos. Os ambientes também são bastante convincentes, cheios de detalhes e texturas, ao ponto de que é até um pouco ilógico o filme não explorá-los com mais atenção.
Dentre os poucos destaques, a sanguinolência é a campeã, com mortes violentas e majoritariamente realizadas com efeitos práticos. Olhos arrancados, pernas decepadas ou simplesmente explosões espontâneas dão um gostinho de humor macabro que leva o filme para territórios mais intensos, mas sem nunca chegar ao sadismo de um Terrifier da vida.
E há boas ideias ali no meio. A constante luta pela sobrevivência é intrigante, especialmente quando os personagens carregam as marcas das mortes anteriores a cada novo ciclo, sabendo que eventualmente o dano acumulado será grande demais para continuar lutando. O mistério por trás da mecânica do loop temporal e o desafio da fuga já dariam uma trama digna o bastante, mas o longa é comprometido com a mediocridade. Na reta final, descarta tudo que propôs, dá um salto temporal de alguns dias e se recusa a explorar qualquer rumo promissor, buscando o conforto de emoções baratas e desfechos supostamente grandiosos — sem nunca esquecer de dar insuportáveis acenos baratos aos fãs do jogo original, claro.
Ainda que não seja um bom filme, Until Dawn - Noite de Terror podia ter saído muito pior, honestamente. Mesmo marcado pela gritante falta de personalidade, desinteresse pelo material-base e pelas próprias ideias originais, o resultado é sem sal, mas não intragável. No fim das contas, é um filme medíocre que até faz se questionar sobre qual era o propósito de adaptar um jogo cujo todo o diferencial era replicar em forma interativa os filmes de terror e seus clichês. No vindouro surto de adaptações, cada vez mais vai ficar claro que muitos jogos só são especiais por serem videogames mesmo.
Until Dawn - Noite de Terror já está em cartaz nos cinemas brasileiros.
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