O que faz você admirar um artista? Eu leio, assisto, escuto, mas raramente procuro saber mais sobre o autor ou autora por trás de determinada obra. Mas, com as redes sociais e algum investimento em publicações nacionais por parte das editoras, estamos a um follow de acompanhar a rotina do artista. Claro que as postagens são apenas um recorte da vida real, mas também dá para entender um pouco mais sobre a pessoa a partir do que ela escolhe mostrar.
Curiosamente, Jefferson Costa, autor de Roseira, Medalha, Engenho e Outras Histórias (Pipoca & Nanquim, 2019), Jeremias - Pele (MSP, 2018) e ilustrador de muitas outras histórias, é meio avesso às redes sociais. Quando o conheci, pedi que lembrasse de me aceitar no Facebook depois. Desde então, (mas no Instagram) acompanho o seu sucesso profissional, mas também um pouco do que dá substância às suas obras.
Cerca de um ano depois, tive a oportunidade de conversar com ele mais uma vez. Ironicamente, o papo começou no Instagram e continuou por email, quando perguntei sobre o que ele achava das redes agora e por que postava o que postava. Além dos projetos pessoais, Costa publica muito sobre pautas sociais e raciais:
"Continuo muito avesso às redes sociais. Acho difícil isso mudar [risos]. Não me sinto nesse lugar de poder dar destaque, visibilidade a qualquer pauta, iniciativa. Acho que diz mais sobre mim, sobre as coisas que me importa, nas coisas que acredito, nas que dou ouvidos, atenção, indignação e sobre as quais quero aprender."
[caption id="attachment_437681" align="aligncenter" width="600"] Página de Jeremias - Pele, de 2018. (Reprodução: MSP)[/caption]
A seguir, o nosso papo completo:
Em Roseira, Medalha, Engenho e Outras Histórias temos uma viagem pelo seu passado e de seus familiares. Você falou uma vez que a palavra para definir essa HQ seria "ancestral". Por que você decidiu que era importante falar de suas origens (mesmo as mais distantes no tempo)?
"Porque não existe identidade sem memória. Quem a ignora não sabe quem é de fato, e, em um país que parece se orgulhar por sua falta de memória proposital, onde lemas de modo de vida muito populares são 'bola pra frente', 'vida que segue', 'não importa de onde veio, mas para onde vai', alimenta o desdém por conhecimento e pelo pertencimento real. O falso pertencimento é a grande arma de controle de massas e destruição de culturas.
"James Baldwin dá um exemplo muito pertinente e direto quando diz que cresceu adorando filmes e histórias do velho oeste, e se identificando com o herói cowboy, obviamente, porque somos ensinados a nos identificar com quem controla a narrativa, o vencedor ou detentor de poder. Só muito mais tarde pôde entender que naquela narrativa ele seria o indígena e não o cowboy. E essa percepção muda completamente tudo. Portanto, entender seu lugar no mundo como indivíduo e verdadeiro pertencimento, é o primeiro passo para compreender a história."
[caption id="attachment_437680" align="aligncenter" width="1461"] Página de Roseira, Medalha, Engenho e Outras Histórias, de 2019. (Reprodução: Pipoca & Nanquim)[/caption]
Nos conhecemos bem na época que você levou o Jabuti por Jeremias - Pele. Cerca de um ano depois, outra indicação. Como você enxerga o efeito em sua carreira? Sobre a premiação: o Jabuti para parece tentar se reinventar, afastando pessoas reacionárias, trazendo a Maju Coutinho para apresentar...
"Para qualquer carreira no meio, [a premiação] é importante no que tange a promoção das obras alcançarem um maior público e possibilita uma vida mais longa do livro através dos tempos. As premiações, de um modo geral, são sempre subjetivas, os resultados dependem da subjetividade da bancada julgadora. Sou muito consciente de que em outros tempos de controle reacionário, o livro Jeremias - Pele, não teria a mínima chance.
"Os caminhos atuais oportunizam maior diversidade de temas e representações. Respeito é uma palavra importante para se compreender nesse contexto, e prêmios oportunizam isso, tanto quanto centenas de depoimentos públicos de leitores... Cada um deles é um prêmio."
Queria saber sobre o seu início como ilustrador e contador de histórias. É uma escolha, às vezes ingrata (pelo menos, alguns artistas dizem). Por parte de sua família, de maneira geral, sua escolha foi bem aceita? Você se vê fazendo outra coisa atualmente?
"O apoio familiar foi e continua sendo importantíssimo. Eu realmente não via o caminho nas artes uma possibilidade viável, e conseguir uma bolsa integral na Quanta Academia de Artes foi o que ajudou a concretizar. Meu investimento e dedicação em mudar de carreira há vinte anos, tem mais a ver com minha decisão de quebrar com a influência que o racismo estrutural tinha nos ambientes de trabalho formal, na minha vida profissional. Estrutura que define lugar e limite. Não escapei, mas como autônomo eu pude minimizar essas influências. Se o objetivo for estabilidade financeira, é sim muito ingrato, incerto, inconsistente... Tudo isso.
"Ainda assim, não me vejo fazendo outra coisa, a não ser que ganhe na loteria, que não jogo, e possa assim me esconder melhor desse mundo — com classe. Ainda assim, provavelmente ainda faria o que faço."
[caption id="attachment_437683" align="aligncenter" width="1080"] Imagem de Anansi, projeto de financiamento coletivo que arrecadou R$ 42 mil (Reprodução: Instagram Jefferson Costa)[/caption]
A pergunta anterior traz uma outra questão que acho importante: se um dos seus filhos escolher seguir uma carreira como a sua, você acha que encontraria um cenário mais fácil, agora, em 2020?
"Acredito sim. Hoje é mais fácil do que há 20 anos, o acesso à informação, formação e a materiais para o trabalho."
Tem algo que você gostaria de falar? Tem algo que não perguntei, que nunca foi perguntado, mas que gostaria de dizer?
"Tem a ver com a primeira pergunta aqui, consciência de pertencimento, consciência do não pertencimento. Sob essa ótica, que as pessoas possam refletir sobre violência policial. Sobre as funções de fato dessa corporação, com o entendimento do lugar de pertencimento, como James Baldwin."
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