Mulher-Hulk: Defensora de Heróis é um projeto, ao mesmo tempo, despretensioso e ousado. Essas duas características, que não costumam andar juntas, tornam a nova série da Marvel um paradoxo que esconde camadas em uma fachada de simplicidade.
Desde o episódio de estreia, a produção jogou honesto com o público ao contar a origem da Mulher-Hulk, um novo rosto dentro do MCU, em uma comédia descompromissada com toques de metalinguagem. Semanalmente, o seriado brincou com essa dinâmica ao desenvolver a protagonista enquanto expandia o universo que a cerca sem o fardo da promessa de mudar tudo.
Essa abordagem foi posta à prova no último episódio da temporada, que finalmente colocou todas as cartas na mesa. Lançado nesta quinta-feira (13), o capítulo final usa suas armas para mostrar que é possível esconder uma das joias dessa franquia por trás da fachada de simplicidade de uma comédia de advocacia.
[A partir daqui, spoilers do final de Mulher-Hulk]
O nono episódio de Mulher-Hulk: Defensora de Heróis mostra as consequências da destruição que a protagonista causou ao ser exposta pelos membros do fórum Inteligência. Mesmo com um motivo tão plausível quanto ter seus dados e um vídeo íntimo expostos, ela acabou presa, demitida e condenada a usar um inibidor de poderes para voltar à sociedade.
Em mais um ponto baixo da vida, Jennifer Walters (Tatiana Maslany) busca refúgio no retiro espiritual de Emil Blonsky (Tim Roth). Por coincidência – ou uma mãozinha do roteiro –, ela vai lá justamente no dia em que o local foi alugado pela Inteligência para uma reunião de seus membros.
Ao cruzar o caminho dos vilões, tudo acontece. Ela descobre que o riquinho babaca Todd (Jon Bass) é o líder do fórum de ressentidos e que ele conseguiu roubar uma amostra de seu sangue para também virar um Hulk. Blonsky desliga o inibidor de poderes e vira o Abominável; o Hulk (Bruce Banner) volta do espaço; Titânia (Jameela Jamil) ressurge do nada para lutar de novo, e por aí vai.
Essa bagunça, comum a alguns finais de série da Marvel, é interrompida pela própria protagonista. Insatisfeita com os rumos da produção, ela decide tomar as rédeas do próprio destino e quebra a quarta parede de forma quase literal: a heroína destrói a barreira do Disney+ e vai até a sala de roteiristas exigir por um desfecho melhor.
Hulk versus o mundo (real)

Na teoria literária, um dos tipos de conflitos mais comuns nas histórias é o de “personagem contra personagem”, em que o protagonista precisa superar um antagonista para atingir seus objetivos. É uma estrutura básica que permeia grande parte das histórias que consumimos, mas que domina o gênero de super-heróis, em que normalmente o mocinho precisa vencer um vilão para salvar o dia.
No último episódio da temporada, Mulher-Hulk: Defensora de Heróis abre mão desse tipo de história e foca quase exclusivamente em “personagem contra destino” que, como o nome diz, mostra o protagonista fazendo tudo ao seu alcance para fugir da direção que lhe foi estipulada. Uma decisão ousada, mas que se torna divertida pela forma como a equipe arquitetou e executou.
Em primeiro lugar, a produção aproveita a quebra da quarta parede, presente desde o início, para fazer a heroína questionar os criadores da série diretamente. Mais do que sacadinhas divertidas, como a destruição da janela do Disney+ e um passeio pelo complexo do estúdio no mundo real, o momento é aproveitado para colocar o dedo em certas feridas da produção e do MCU como um todo.

Por mais que Jen esteja reclamando da própria história, é fácil para o público se identificar com as questões. Ano após ano a audiência é bombardeada com produções carregadas de clichês, que vão desde finais que buscam ameaças capazes de destruir o mundo, até lutas contra vilões que têm os mesmos poderes e habilidades dos heróis (como visto em Hulk e Abominável).
Porém, ao invés de usar o momento para justificar e arranjar desculpas, os roteiristas (reais) aproveitam a oportunidade para rir de si mesmos e ainda levar a história ao passo adiante. Mais do que Titânia, HulkRei ou Abominável, o verdadeiro vilão final de Mulher-Hulk é ninguém menos do que Kevin Feige, o chefão da Marvel. Ou quase isso.
Precisamos falar com o K.E.V.I.N.
Mesmo sem fazer parte do cânone dos estudos, há quem defenda que a literatura conta também com o conflito “personagem versus autor”. No grande clímax da temporada, Mulher-Hulk toma esse caminho ao fazer a verdona confrontar os superiores dos roteiristas: o K.E.V.I.N.
Clara referência a Kevin Feige, o chefão da Marvel, a máquina é a inteligência artificial que toma as decisões a respeito dos rumos dos filmes e séries do Marvel Studios no “mundo real” que a heroína invadiu para mudar sua história. Com ele, Jen tem um conflito que foge da porradaria apressada e usa a metalinguagem como arma.

A heroína tem a chance de (metaforicamente) jogar na cara do todo poderoso criador que as produções do MCU variam de qualidade graças ao comodismo de se apoiar em uma montanha de clichês. É claro que a produção faz isso de forma cautelosa e até elogiosa para não ofender o público, os artistas responsáveis pelas outras obras e, principalmente, a empresa que paga as contas.
Porém, isso traz para o debate questões que só poderiam ser feitas por alguém que quebra a parede e ultrapassa a barreira da ficção. Não chega a ser inédito (Homem-Animal de Grant Morrison fez isso mais de 30 anos atrás nas HQs), mas é um respiro de novas ideias que faz muito bem à série, ao universo em que ela se encaixa e até ao gênero de super-heróis como um todo.
Dessa forma, a série escapa da armadilha de ter um final que é forçadamente megalomaníaco. Claro que isso não apaga a cota de problemas da produção, tanto em quesito de ritmo, quanto de narrativa. Os enredos paralelos são resolvidos apressadamente e alguns deles ficam até meio perdidos pelo caminho – em especial Titânia, com sua falta de personalidade ou motivação.
Uma prova que, mesmo sendo corajosa e ousada, a série ainda está dentro do grande ecossistema de filmes e séries da Marvel. Mas não me entenda mal, o gosto passa longe de ser amargo. Citações a X-Men, um almoço com o Demolidor (Charlie Cox) e até a curiosidade deixada por ganchos como o retorno do Hulk com o filho Skaar e um possível filme da Mulher-Hulk, não tiram o brilho da produção. Pelo contrário, esses pontos mostram que é possível fazer algo novo mesmo dentro de fórmulas e regras que foram impostas ao longo desses quase 15 anos de MCU.

Que bom seria morar nesse universo em que o grande algoritmo responsável pelas infinitas produções que consumimos pudesse ser confrontado com o desgaste de suas ideias e ainda aprender com isso. A própria série da Mulher-Hulk poderia se beneficiar de um refinamento maior, já que o já citado descompromisso e autoindulgência não passam de desculpas para a entrega de uma produção pouco polida. Resta torcer para que o Kevin do mundo real (aquele do boné), e toda a equipe que o cerca, se inspire na ficção e afrouxe mais sua fórmula em favor da criatividade.
Você vai querer me ver com raiva
Esse finale tocou em tantos pontos que a belíssima homenagem na abertura do episódio final quase ficou de fora do texto. Os minutos iniciais do capítulo final de Mulher-Hulk recriam a introdução de O Incrível Hulk, série exibida entre 1977 e 1982 nos EUA. É possível dizer, sem exageros, que essa foi uma das produções responsáveis por catapultar a popularidade do Hulk (e da Marvel) no passado.
É um aceno carinhoso ao passado que vai além do fanservice. Um lembrete que a marca que os Hulks deixaram na cultura pop deve muito à televisão e hoje retorna no streaming, justamente uma espécie de evolução na forma de produzir (e consumir) conteúdo. Nada mal para uma série que se vendeu como uma simples comédia de tribunal.

A primeira (e por enquanto única) temporada de Mulher-Hulk: Defensora de Heróis está disponível para streaming no Disney+.