À primeira vista, não há nada que aproxime um menino britânico oriundo de família abastada, detido em um campo de prisioneiros no Japão, durante a Segunda Guerra Mundial; um estudante de medicina argentino — e futuro líder revolucionário — cruzando o continente sul-americano em uma moto; e uma adolescente americana, aspirante a artista, às vésperas de se formar na escola católica e ingressar na faculdade.
Os três, no entanto, exemplificam um gênero cinematográfico conhecido como coming-of-age (algo como “amadurecimento”), que se caracteriza por trazer um recorte na vida do protagonista, centrado em acontecimentos determinantes na formação de seu caráter. Quando bem contadas, essas histórias são capazes de criar enorme empatia, não importa o quão específicas sejam as circunstâncias que cercam os personagens — como os mencionados no parágrafo anterior, vividos, respectivamente, por Christian Bale, Gael García Bernal e Saoirse Ronan em Império do Sol (1987), Diários de Motocicleta (2004) e Lady Bird: A Hora de Voar (2017).
Jojo Rabbit apresenta o cenário mais improvável possível para um longa-metragem desse tipo. O enredo acompanha Jojo (Roman Griffin Davis), um garoto de 10 anos tão dedicado ao nazismo que seu amigo imaginário é o próprio Adolf Hitler (Taika Waititi). Ansioso para se juntar à Deutsches Jungvolk — a divisão infantil da Juventude Hitlerista, cujo ingresso passou a ser mandatório na Alemanha a partir de 1939 —, ele vê sua vida virar do avesso quando descobre que uma garota judia chamada Elsa (Thomasin McKenzie) vive escondida detrás das paredes de sua casa.
Apesar da premissa potencialmente controversa, o neozelandês Waititi, responsável também pela direção e pelo roteiro (baseado no romance Caging Skies, de sua conterrânea Christine Leunens, prestes a ganhar a primeira edição brasileira, sob o título O Céu que nos Oprime), consegue entregar um filme hilário, comovente e surpreendentemente profundo. A façanha se deve, em grande parte, à sua habilidade de explorar os clichês com inteligência e sensibilidade.
O script desarma a polêmica ao ressaltar o caráter absurdo de qualquer coisa relacionada ao pensamento nazista, algo evidenciado nas cenas no acampamento da Jungvolk e na chegada do oficial da Gestapo, Deertz (Stephen Merchant). E, claro, as interações entre Jojo e Adolf rendem alguns dos momentos mais divertidos do longa. Todavia, mais do que mera piada, a manifestação da imaginação do garoto exerce uma importante função narrativa: retratar de maneira dinâmica o conflito interno do personagem, dividido entre a fidelidade ao partido, o amor familiar e a descoberta de um novo sentimento.
Por sinal, aí reside o coração do filme. O roteiro assume sem pudores a vocação para fábula edificante, feel-good, e costura muito bem a terna, porém problemática relação do protagonista com a mãe, Rosie (Scarlett Johansson), e seu crescente fascínio por Elsa, ao mesmo tempo em que estabelece o inevitável final agridoce que se prenuncia a partir do segundo ato. Soma-se à ótima escrita a performance do trio central — o pequeno Davis, em uma estreia nas telonas digna de aplausos; Johansson, radiante e cativante como nunca; e a jovem McKenzie, à vontade alternando-se entre intimidação, vulnerabilidade e charme.
Também merece destaque o elenco de apoio. Além do já citado Merchant, o sempre competente Sam Rockwell rouba a cena como Klenzendorf, capitão do exército alemão; Rebel Wilson diverte o público e a si mesma no papel de Fraulein Rahm, monitora do acampamento; e um praticamente calado Alfie Allen revela timing cômico na pele de Finkel, braço direito do capitão. Outra boa revelação do casting é o adorável Archie Yates, que interpreta Yorki, único amigo de Jojo no mundo real.
Na cadeira de diretor, Waititi por vezes acaba emulando uma versão menos pitoresca de Wes Anderson, especialmente em maneirismos como as montagens ao som de canções indie. Em outras ocasiões, recorre, sem sarcasmo, a chavões como a câmera-lenta em uma passagem dramática. Mas, no geral, ele reafirma a personalidade demonstrada em O Que Fazemos nas Sombras (2014) e Thor: Ragnarok (2017) — principalmente, ao inserir uma inesperada sequência fundamentada nas convenções do terror e ao explorar recursos criativos, como a ênfase dada aos sapatos de Rosie.
O maior mérito de Jojo Rabbit, entretanto, é o tema principal. Confrontado com a realidade, o garoto fanático percebe a fragilidade do discurso do ódio, que prega a demonização do outro (seja judeu, comunista ou qualquer que seja o “inimigo” da vez) e a ridícula ideia de uma pretensa superioridade racial (“agora nossos únicos amigos são os japoneses e, cá entre nós, eles não parecem muito arianos”, observa argutamente Yorki, a certa altura), e é forçado a rever suas convicções. Uma mensagem sempre atual e necessária, não importa as circunstâncias que cercam cada membro da audiência.