ALERTA DE GATILHO: este texto possui conteúdo sensível.
Não importa se você considera a Liga da Justiça de Zack Snyder um épico que coroa a visão única de um autor ou apenas um exercício de indulgência de um cineasta a si mesmo e à sua base de fãs. Uma coisa é indiscutível: a trajetória do filme até chegar às telas é singular e, ao mesmo tempo, exemplar do modus operandi de Hollywood. É uma jornada de perda e redenção, renúncia e persistência, abuso e solidariedade; uma prova de que nada deve ser encarado de modo absoluto.
Exceto, é claro, a tragédia que iniciou essa história.
Zack Snyder e sua primeira esposa, Denise, adotaram Autumn quando ela ainda era bebê, um pouco mais velha que o filho biológico do casal. O diretor teve mais quatro rebentos (dois deles, frutos de um segundo relacionamento, com Kirsten), até se casar com Deborah, atual parceira e produtora de todos seus longas-metragens, e com quem adotou mais duas crianças.
Nessa numerosa família, Autumn se destacava em um aspecto caro ao pai. “Ela era a única fã”, contou Snyder à Vanity Fair, em referência ao fato de que a filha partilhava seus gostos artísticos e, inclusive, planejava ser escritora. Ainda segundo ele, muitos dos textos transpareciam todo o sofrimento da jovem, que enfrentava uma depressão severa e estava em tratamento, com terapia e medicamentos.
Em março de 2017, durante a pós-produção de Liga da Justiça, caiu “um raio no centro de toda a saga”, nas palavras do cineasta: aos 20 anos, Autumn cometeu suicídio.
A princípio, os Snyder se mantiveram à frente do filme, em uma tentativa de encontrar refúgio e distração no trabalho. “Olhando em retrospecto, creio que você realmente tem de encarar as coisas, não colocá-las em segundo plano”, reconheceu Deborah ao Insider. Tanto que, dois meses depois, seu marido, enfim, entregou os pontos e disse que não poderia mais continuar.
A dor foi o principal motivo por trás da decisão de deixar o projeto, mas não o único. Àquela altura, o diretor já enfrentava crescente pressão por parte da Warner Bros. Pictures, em um processo de perda de confiança iniciado após o lançamento de Batman v Superman: A Origem da Justiça, em 2016.
De um lado, o desempenho aquém do esperado nas bilheterias e as avaliações negativas, em especial, referentes ao tom sombrio proposto por Snyder para o universo cinematográfico da DC. De outro, o sucesso de público e crítica da concorrência, com a celebração do caráter leve e divertido dos filmes da Marvel Studios. Mesmo dentro de casa, o êxito do inspirador Mulher-Maravilha (2017), de Patty Jenkins, parecia indicar que a versão violenta, taciturna e desbotada dos super-heróis havia perdido lugar.
Determinado a virar o jogo com Liga da Justiça, o CEO da Warner na época, Kevin Tsujihara, escalou dois executivos — o produtor Jon Berg e o então chefe criativo da DC Geoff Johns — para “supervisionar” a produção. Leia-se: garantir que Snyder adotaria a estratégia de mais humor, menos cara feia. Para isso, Johns trouxe Joss Whedon, responsável por The Avengers: Os Vingadores (2012) e Vingadores: Era de Ultron (2015), para escrever algumas cenas e diálogos.
Snyder não se sentiu intimidado. Abraçou a chegada de Whedon, a quem definiu como um “escritor talentoso”, e tentou o quanto pôde conciliar sua visão com as demandas do estúdio. Todavia, depois de mostrar um primeiro corte do filme, com cerca de 2h40, a situação azedou, com Tsujihara exigindo que a duração fosse reduzida para não mais que duas horas e o novo corroteirista tendo sua participação cada vez mais ampliada, chegando a palpitar na condução de refilmagens.
Com a tragédia pessoal, aquele cabo de guerra perdeu o sentido.
Quando abandonou o barco, a ideia de Snyder era se afastar por um ano para se dedicar à família, plano que acabou se estendendo para dois. Nesse meio tempo, divertia-se mostrando para os mais chegados uma montagem bruta de Liga da Justiça, em preto e branco, sem efeitos visuais ou trilha sonora e com aproximadamente quatro horas, que havia carregado consigo em um notebook. “Alguns amigos próximos, que trabalharam no filme, sempre diziam: ‘ah, talvez a gente largue um pen-drive [com o arquivo digital] em algum lugar para um fã encontrar’”, revelou ao The New York Times. Ele próprio não resistiu e passou a dar indiretas sobre a existência de um corte do diretor.
Foi a deixa para os fãs, insatisfeitos com o longa finalizado por Whedon, lançarem o agora famoso #ReleaseTheSnyderCut. O movimento fez barulho com outdoors e campanhas de financiamento e chamou a atenção da Warner (sob nova direção), que fez uma proposta ao ex-contratado. Inicialmente, a ideia era disponibilizar aquela mesma montagem bruta no HD do computador. Snyder bateu o pé até conseguir um orçamento de cerca de US$70 milhões para, enfim, concretizar o que havia planejado.
Além dos entusiastas do diretor, o elenco também comemorou. Em particular, Ray Fisher, intérprete do Ciborgue, crítico ferrenho não somente da versão que chegou aos cinemas como, mais ainda, de Whedon, a quem denunciou por comportamento abusivo no set. A atitude do ator incentivou outros a fazer o mesmo, como alguns de seus colegas, bem como as atrizes Charisma Carpenter, Michelle Trachtenberg e Amber Benson, que também sofreram nas mãos de Whedon quando trabalharam com ele na série Buffy, a Caça-Vampiros (1997-2003).
A Warner abriu uma investigação e anunciou que “medidas” haviam sido tomadas, sem oferecer maiores detalhes. Whedon teve um contrato com a HBO cancelado e praticamente se tornou persona non grata em Hollywood. Está longe de ser a resolução ideal, porém, Fisher pode se sentir redimido ao menos no âmbito do filme: o arco de seu personagem é, disparado, o melhor acréscimo no Snyder Cut.
Obviamente, é o cineasta quem mais deve se dar por satisfeito. Além da sensação de realização artística, da conquista de posição de prestígio por ter protagonizado uma espetacular volta por cima e — por que não? — a satisfação por remediar o orgulho ferido, sua maior vitória é no campo pessoal. A ideia de superação é encerramento é resumida na frase que encerra o novo longa: “for Autumn”.
Sem o luto, o filme provavelmente não existiria nesse formato — Snyder, inclusive, já observou que ele é peça-chave na trama. Pode-se questionar o modo como é desenvolvido (o sentimento é verbalizado apenas por personagens femininas; os masculinos o ruminam estoicamente, sem qualquer momento de conexão real entre si), mas o tema de fato marca presença, norteando boa parte da narrativa.
Nada, afinal, deve ser encarado de modo absoluto. O diretor pode ser um artista egocêntrico com tendência a retratar seus heróis e heroínas com viés sexista; ao mesmo tempo, é um profissional querido e respeitado, que cria ambientes de trabalho livres de abuso. Seus fãs mais fiéis são capazes tanto de assediar jornalistas críticos da obra quanto de arrecadar fundos para campanhas de conscientização e prevenção do suicídio.
E Liga da Justiça de Zack Snyder talvez possa ser descrito como épico e autoindulgente.