É curioso pensar no quanto o mundo mudou nos quase quatro anos que separam a quintaª temporada de Black Mirror dos cinco episódios inéditos do sexto volume, já disponível na Netflix.
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Uma pandemia global, a popularização da inteligência artificial substituindo mentes criativas (estou olhando para você, ChatGPT), deepfakes e todo tipo de revolução cultural que vimos, para nem entrar na política, em menos de meia década. Tais fatos deixam então a questão: o que Black Mirror ainda tem a oferecer em um mundo que já é “muito Black Mirror”?
A princípio, há duas formas de responder a pergunta. Como produto de audiovisual pensado para o entretenimento de massa no serviço de streaming mais popular do planeta, a antologia segue deliciosamente cruel e pessimista. Os novos capítulos fornecem a dose de desgraçamento mental a que estamos acostumados desde que a trama surgiu, em 2011, com uma história para dizer o mínimo, inusitada entre o Primeiro-Ministro britânico forçado a… vocês lembram… com um porco.
Embora não chegue aos pés da inventividade das duas primeiras temporadas (produzidas pelo Channel 4 britânico, antes da compra da série pela Netflix), o sexto volume de Black Mirror consegue ser pelo menos envolvente, com um elenco de peso e brincando com diferentes gêneros.
Já como “crítica social forte”, o segundo apelo da série, os roteiros de Charlie Brooker derrapam justamente por não trazerem nada de novo ao espectador. Sim, a tecnologia pode ser ruim. Sim, as pessoas são capazes de atrocidades. Mas de quantas formas conseguimos ver isso até chegarmos a um “ok, ok, entendi”?
Na tentativa de se livrar da mesmice, a sexta temporada muda o foco para a cultura de streaming em si, não poupando farpas nem à própria Netflix e ao conteúdo que é despejado e consumido no serviço. A premissa funciona bem como base para os dois melhores episódios do novo ano, mas não o redime de uma experiência até tediosa, em certo ponto.
Assim como em volumes anteriores, Black Mirror mais uma vez sofre do grande mal de séries de antologia (com história e elenco diferentes a cada episódio), oscilando entre capítulos realmente inventivos e chocantes e histórias desinteressantes que não surpreenderiam se aparecerem no final da lista de favoritos dos fãs.
A irregularidade torna-se um problema ainda agravante com o número reduzido de episódios, visto que o saldo final pende para o negativo. O que não significa, no entanto, que não há boas surpresas, como você verá na resenha individual de cada episódio, logo abaixo:
1- A Joan é Péssima

O capítulo inicial apresenta Joan (Annie Murphy), mulher que, como indica o título, é péssima. Grosseira com colegas de trabalho, com o parceiro e praticamente todo mundo, ela vê a própria vida virar de pernas pro ar quando, de alguma forma, vira tema de uma série da Streamberry (qualquer semelhança com a Netflix não é mera coincidência). Black Mirror então abusa da metalinguagem ao trazer a personagem perdendo a cabeça ao ver cada passo de sua vida privada exposta aos milhões de espectadores.
Como citado anteriormente, o roteiro ácido é uma cutucada nem um pouco discreta à própria Netflix e compensa pela “valentia” de morder a mão do streaming, especialmente em dias em que uma cobrança por um perfil adicional pode ser adicionada quando o serviço bem quiser.
A Joan é Péssima é talvez o mais Black Mirror “raiz” do novo ano e, se não choca, ao menos diverte com a jornada da personagem em busca de tirar o serviço do ar.
2- Loch Henry

Os tapas na cara da Netflix continuam no segundo episódio, com um casal (Myha'la Herrold e Samuel Blenkin) em busca de filmar um documentário true crime para ser vendido para a, adivinha, “Streamberry”. A busca dos jovens pela fama acaba descobrindo uma verdade terrível sobre a pequena cidade do garoto.
Aqui, Brooker usa as ferramentas do terror e suspense para contar um thriller bem feito, com os momentos de tensão e virada que esperamos da série. Parece improvável, mas o episódio acaba sendo também “muito Black Mirror” ao mesmo tempo em que, em termos de tom, andamento e gênero, é talvez o que mais foge ao que esperamos da série. A trama envolvente pode iludir que estamos no rumo de uma temporada inteira competente, mas as coisas mudam de figura logo, logo.
3- Beyond the Sea

A primeira derrapada da série vem em Beyond the Sea. O episódio é o mais divulgado no marketing da série e reúne os três astros mais famosos do novo ano (Aaron Paul, Josh Hartnett e Kate Mara), mas não justifica o investimento, com trama simplista e previsível.
Paul e Hartnett vivem dois astronautas fora da Terra, em um 1969 alternativo. A dupla é representada por réplicas artificiais no planeta, trocando de consciência em uma espécie de intercâmbio espacial. As coisas mudam quando a réplica de Hartnett é destruída e sua família assassinada. O personagem de Paul então oferece que ele passe algumas horas por dia no “corpo” do outro na Terra. O resultado, você já imagina.
No papel, o conflito até soa interessante, com um homem que perdeu tudo e todos se fascinando pela grama do vizinho, mas as exageradas 1h20min do episódio tornam a ideia maçante ao ponto da exaustão, ainda mais considerando que o desfecho do conto pode ser previsto desde o começo.
4- Mazey Day

A coisa complica com Mazey Day, de longe, mas de longe mesmo, o episódio mais fraco da temporada, e talvez até de toda Black Mirror. Com Zazie Beetz (Coringa), Clara Rugaard e Danny Ramirez, o capítulo tem uma paparazzi (Beetz) em busca de expor uma estrela de cinema em decadência (Rugaard) por uma bolada em dinheiro. Ela logo percebe que o sumiço da atriz está ligado a um mistério maior e imprevisível.
O que poderia ser uma interessante crítica sobre a cultura de celebridades e o tudo pela fama acaba soterrado em um vergonhoso suspense, com uma virada de trama que fará o espectador se perguntar se não trocou de canal (não que isso aconteça em streaming) por acidente. De tão fora do tom, o capítulo não se redime nem pela atuação da competente Zazie Beetz, que (compreensivelmente) leva o roteiro do jeito que consegue.
5- Demônio 79

Black Mirror põe mais uma vez o pé no sobrenatural com a trama sobre uma jovem (Anjana Vasan) que acaba metida em um pacto com um demônio (Paapa Essiedu). Ela deve então sacrificar três vidas humanas para evitar um apocalipse nuclear.
Demônio 79 representa um leve aumento de diversão em comparação ao capítulo anterior, mas visto por último, sofre com a fragilidade dos dois episódios anteriores por também não oferecer nada de marcante. Se visto de forma isolada, o episódio tem seu charme, mas está longe do tempero Black Mirror e encerra a temporada com um sabor azedo.
No balanço geral, percebe-se que Black Mirror, hoje em dia, trata-se mais de “ideias” boas, que não necessariamente se traduzem bem para a tela. A catarse de choque que a série transmitia com maestria em anos anteriores parece diluída em um mundo aparentemente mais estranho que a ficção. Afinal, ninguém disse que o fim do mundo não pode ser divertido, não é?
As seis temporadas de Black Mirror e o filme interativo Black Mirror: Bandersnatch estão em catálogo na Netflix.