Em 2011, o então iniciante Ari Aster escreveu e dirigiu um curta-metragem chamado Beau. Com sete minutos de duração, o projeto foi carregado por uma angústia potente que se tornaria a marca registrada do cineasta, cuja carreira explodiu na dobradinha Hereditário (2018) e Midsommar - O Mal Não Espera a Noite (2019). Mais de uma década e muito prestígio depois, Aster retorna à ideia em Beau Tem Medo, filme que encapsula sua evolução como diretor entre triunfos e excessos.
A história acompanha o paranóico Beau (Joaquin Phoenix) em uma “odisseia” para visitar a própria mãe. Usada na sinopse, a palavra é definida no dicionário como uma viagem marcada por “eventos imprevistos e singulares”, uma forma singela de descrever as mais variadas desgraças que o herói precisa enfrentar para chegar ao destino – e o que ele encontra por lá.
A trama não faz segredo de que Beau tem medo da própria mãe, direcionamento que leva Ari Aster de volta a um tema recorrente em sua filmografia: os problemas familiares. Uma reincidência que gera tanto os pontos altos quanto os baixos de Beau Tem Medo.
De cara, o longa faz grande esforço em se afastar de comparações com Hereditário, filme que usou um realismo cru para transformar casos de família em horror. Desta vez, a abordagem se volta ao bizarro e desenha uma realidade absurda cujo propósito é apavorar Beau a qualquer custo. Uma escolha consciente, que abre mão do naturalismo para jogar o herói da vez em pesadelos e fobias que só seriam possíveis em uma versão distorcida do mundo.
É a partir da caricatura que Aster se propõe a retomar alguns de seus grandes interesses, em especial o de misturar horror e humor mórbido para narrar um mistério. Habilidoso em tornar incômodos e inadequações inofensivas do cotidiano em grandes terrores, o cineasta aproveita a nova perspectiva para levar os problemas maternos de Beau para terrenos inéditos na carreira.
Em seus melhores momentos, a produção distorce ainda mais esse universo e dá origem a passagens memoráveis que brincam com outras formas de arte. Abraçando animação e teatro, Beau Tem Medo se torna tocante e tão assustador quanto belo. Um apuro estético que escancara de vez a fronteira com o surreal e constantemente mira no vale da estranheza – recurso que surge como um lembrete de que “realidade” é um conceito relativo no mundo de Beau.
O uso de novas ferramentas para chocar e fazer rir demonstra a maturidade que o cineasta adquiriu ao longo da carreira ao ponto de ser certeiro mesmo quando se aventura por meios que nunca havia experimentado antes. O problema de Beau Tem Medo está justamente em alguns dos vícios que o cineasta também adquiriu com o tempo.
Apesar dos esforços em evitar comparações com seus trabalhos anteriores, o cineasta percorre novamente muitos dos caminhos trilhados por personagens de seus outros projetos. Há até um grau de autocelebração, mas em certa altura parece até que a ideia é repetir discussões e choques do passado com novos rostos.
Neste ponto, é importante elogiar o elenco, que é certeiro ao encontrar vozes próprias para seus personagens. Joaquin Phoenix dá vida à fragilidade paralisante de Beau em uma interpretação no ponto para passar verdade e ainda se encaixar em um mundo caricato.
No papel de mãe, Patti LuPone brilha com uma atuação cortante que a coloca em pé de igualdade com Toni Collette – de Hereditário – no panteão de mães complicadas da obra de Ari Aster. Do outro lado, Parker Posey traz frescor e rouba a cena sempre que aparece.
Outro grande calcanhar de Aquiles do projeto é seu ritmo. É clara a intenção de tornar a odisseia de Beau cada vez mais absurda e enervante em um cozinhamento lento. Porém, a produção se mostra apaixonada demais pela piração em tela, ao ponto de constantemente se esquecer que há uma história em andamento. São vários os momentos em que a trama começa a ferver, mas propositalmente apaga o fogo só para assistir as bolhas que se formaram no caldo. Um problema que sequer os choques inesperados são capazes de remediar.
Essa lentidão pode ser lida como um reflexo da forma como Beau paralisa perante medos e indecisão. Mas a justificativa é frágil perante a forma como prejudica a conexão do público com a história e como enfraquece o desenvolvimento do mistério. Neste ponto, chegamos ao pecado capital da produção: a covardia na hora de deixar dúvidas.
Beau Tem Medo é um enigma que implora para ser decifrado ao espalhar pistas carregadas de simbolismo. É possível fazer diferentes leituras das situações, mas as dicas a respeito do que está acontecendo são fragmentadas até demais. É como se o filme convidasse a montar um quebra-cabeças incompleto, que só pode ser concluído quando ele escolher entregar peças que escondeu propositalmente para estar a frente do espectador.
Daí surgem ideias boas, como ensaiar diferentes finais para negá-los e forçar Beau a seguir em frente. Porém, o resultado é o mesmo dos filmes anteriores, em que o diretor e roteirista não se contenta com a mágica e decide explicá-la da forma mais didática possível. Consciente disso, Aster ao menos se esforça em trazer truques — e até piadas — autoindulgentes para disfarçar a pouca confiança na capacidade interpretativa do público. Mas não muda o fato de que se explicar trai o direcionamento do projeto, até então focado em usar simbolismo para se abrir a interpretações.
Com isso, Beau Tem Medo se torna uma faca de dois gumes que, por vezes, encapsula seus momentos mais memoráveis e envolventes nos mesmos segmentos tediosos. Fato é que esse mecanismo faz com que o longa cresça após a exibição, já que a memória vai fisgar algum momento impactante e deixar de lado os longos minutos de apatia até chegar nele.
É curioso que isso aconteça justamente em um projeto que reflete sobre o poder da catarse, no sentido da descarga de emoções por meio da arte. Já é batida a piada de que Ari Aster escolhe fazer filmes em vez de terapia, mas a experiência de Beau torna este processo quase belo e coloca em tela como personagem e público podem se misturar no campo das emoções.
Não é à toa que a conexão entre o herói torturado e o público se firma de vez quando ele chega a uma peça de teatro, momento em que entender passa a ter menos importância do que sentir. Uma espécie de atestado no poder da arte como forma de lidar com nossos próprios demônios. Uma tese que, assim como todos os raros momentos doces da jornada, guarda um lado sombrio.
Afinal de contas, é fácil apontar para quão macabra pode ser a mente de um realizador capaz de criar obras grotescas, mas o que isso diz a respeito de quem as consome? Uma rara pergunta que a produção não faz questão de ditar ou responder, mas que joga uma última perspectiva em torno de todo o projeto. Beau tem medo e, talvez, a culpa seja nossa.