Se você já leu qualquer relato de bastidores sobre desenvolvimento de games, sabe que há um ditado muito popular entre os profissionais da área: é um milagre que qualquer jogo seja feito. Entre prazos apertados, lidar com equipes gigantescas - frequentemente em mais de um país - e os desafios de desbravar tecnologia de ponta, essa é uma indústria que passa por muitos perrengues para funcionar.
Mythic Quest ajuda a explorar um pouco desse caos, mostrando os bastidores que nem sempre são conhecidos pelo grande público. A série do Apple TV+ não só ajuda a mostrar como é o dia a dia de um estúdio de games, mas também mergulha sem medo nos podres que assolam a área - talvez até bem demais, como contou a atriz Ashly Burch (Rachel): “Já ouvi de gente da indústria que a série dá gatilhos”, falou, aos risos, durante coletiva de imprensa em que o NerdBunker esteve presente.
Para quem acompanha histórias de desenvolvimento de games, sabe que há uma avalanche de problemas estruturais: hora extra não-remunerada (ou crunch), assédio, líderes ruins e má gestão de equipes. O seriado, ainda que produzido pela Ubisoft (que acumula muitas denúncias do tipo), usa de todos esses tópicos sensíveis para criar a atmosfera caótica de uma área que triunfa mesmo com tanta sujeira.

Ashly Burch sabe muito bem disso. Além de atuar como Rachel, a desajeitada testadora do game fictício Mythic Quest, ela ainda serve como roteirista e consultora do seriado. Isso se dá pelo fato de que é a única pessoa do elenco que de fato trabalha com games, tendo interpretado Aloy em Horizon Zero Dawn (e sua continuação), Chloe em Life is Strange, e várias outras personagens marcantes.
Burch está em constante contato com gente da área, e sempre ouve como Mythic Quest costuma ser certeira em sua representação do mundo dos games:
“Em específico, há um momento na primeira temporada em que Ian chega e derruba um monte de coisas durante um xilique. Certo dia, um diretor criativo de um game chegou para mim e disse 'Isso foi real demais para mim'. Acho que a série é bem divertida para pessoas da área porque é fiel à realidade e também uma carta de amor à indústria.Dá um pouco de vergonha alheia quando se percebe o quão realista é mas, como uma pessoa que trabalha na área, é muito divertido vê-la representada em um seriado com tanta gente e personagens incríveis. Isso ajuda a mostrar que é uma indústria legítima, que nem sempre é a percepção que as pessoas têm da área de games.”
Para a atriz, enfrentar os altos e baixos com bom humor é uma forma de ajudar a conscientizar o público de como seus jogos favoritos são feitos. Diferente do cinema, o processo de criação de videogames ainda é muito elusivo, portanto um seriado que retrata o que acontece dentro dos estúdios é esclarecedor - mesmo que toque nas feridas de quem lida com os podres diariamente: “Dá gatilhos de um jeito divertido!”, brincou Jessie Ennis, que vive a intensa Jo. “É, nosso objetivo é retraumatizar a indústria de games”, acrescentou Burch.
O desconhecido mundo dos games

Mythic Quest é, essencialmente, uma comédia de ambiente de trabalho, por mais inusitada que seja sua roupagem. Mas a escolha de usar um estúdio de games como cenário não é acidental, e sim reflexo da importância que os jogos continuam ganhando na consciência popular.
“Games é uma indústria bilionária que faz o cinema parecer pequeno - não que isso signifique muito esses dias”, afirma aos risos David Hornsby, ator e produtor-executivo da série. Segundo ele, que vive o produtor fracassado David no programa, o apelo da ambientação é justamente o contraste entre o enorme sucesso dos videogames mesmo quando as particularidades do desenvolvimento seguem desconhecidas ao grande público:
“É uma indústria de escala global, mas que ainda não foi devidamente explorada na televisão. Contar as histórias específicas dessa área parecia algo inédito. Há séries como Silicon Valley que lidam com esses novos mundos que surgiram na última década, então é muito animador poder mergulhar nas particularidades deste local de trabalho. Isso nos dá tramas únicas para contar.”
Parte dessa investida, claro, significa também lidar com as bizarrices. Inclusive, as particularidades que Hornsby cita é justamente explorar como os personagens lidam com essas questões complicadas que permeiam o desenvolvimento de jogos na vida real:
“Quanto aos temas mais sensíveis, não acho que tenhamos fugido de nada. Mesmo na primeira temporada já tocamos no assunto da misoginia, ou das responsabilidade das plataformas globais - e mostrando os vários lados das discussões, espero.São situações delicadas, e queremos ver como nossos personagens reagem a isso. É daí que surge a diversão! Para nós, nada está fora dos limites se for para inspirar tramas interessantes e divertidas.”
O verdadeiro acerto de Mythic Quest é criar uma comédia de ambiente de trabalho cheia de carisma e bons personagens, mas sem passar pano para muita coisa que precisa melhorar na indústria. Para qualquer fã de videogame, o programa é a pedida certa por apresentar esse mundo de forma honesta, com um toque de acidez.
Como há poucas obras que exploram os bastidores dos games, é bom ver um seriado que celebra o árduo esforço dos desenvolvedores sem ofuscar as várias dificuldades pelo caminho.
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A terceira temporada de Mythic Quest é transmitida todas às sextas pelo Apple TV+. O serviço também conta com as duas temporadas anteriores no catálogo.