A virada do século 19 para o 20 marcou o início de um fenômeno editorial nos Estados Unidos: a ascensão das revistas pulp, cujo nome já fornece uma pista do perfil desse tipo de mídia. Pulp (em inglês, “polpa” — no caso, de celulose) é uma alusão ao papel grosseiro no qual elas eram impressas, o que possibilitava a produção de grandes tiragens e sua comercialização a preços reduzidos.
Eram, portanto, revistas baratas, destinadas às massas. Não à toa, exploravam gêneros de apelo popular — policial, fantasia, ficção científica, terror — e estampavam capas com ilustrações e títulos chamativos: Black Mask, Astounding Science Fiction, Weird Tales. Autores que depois se tornaram referência, a exemplo de Raymond Chandler, Edgar Rice Burroughs e Ray Bradbury, publicavam em suas páginas. Essas publicações começaram a perder espaço a partir da década de 1950, não sem antes formar toda uma geração de leitores, muitos dos quais acabaram se arriscando na escrita.
Mike Mignola foi um deles. Respondendo a um comentário sobre a influência do ícone da literatura de terror H.P. Lovecraft em sua obra mais famosa, o quadrinista estadunidense disse em uma entrevista: “Sim, aquilo tudo está lá, mas acho que a estrutura fundamental de Hellboy veio dos caras das revistas pulp, como Robert E. Howard e Manly Wade Wellman. Mais especificamente, a ideia desse personagem que meio que vaga por aí e dá de cara com as coisas”.
A importância desses dois aspectos nos quadrinhos de Mignola fica mais evidente quando se analisa suas adaptações cinematográficas. A dobradinha escrita e dirigida por Guillermo Del Toro — Hellboy (2004) e Hellboy II: O Exército Dourado (2008) — se apoia firmemente no conceito lovecraftiano de míticos seres extradimensionais que querem destruir o mundo. O malfadado remake de 2019 segue a mesma trilha ao explorar, mais uma vez, a vocação de Anung Un Rama (nome verdadeiro do garoto infernal) para arauto do apocalipse.
Já o novo longa-metragem volta às raízes pulp. O que não surpreende: adaptação da minissérie de mesmo nome, Hellboy e o Homem Torto é, afinal, a primeira iteração da franquia com roteiro assinado pelo próprio Mignola, em parceria com Christopher Golden e o diretor Brian Taylor. Anteriormente, o quadrinista havia apenas colaborado com o argumento de O Exército Dourado.
Na trama, durante uma missão pelo Bureau de Pesquisas e Defesa Paranormal, Hellboy (Jack Kesy) se vê perdido em uma floresta junto com a colega Bobbie Jo Song (Adeline Rudolph), uma agente sem qualquer experiência de campo. A dupla então se envolve com o drama de Tom Ferrell (Jefferson White), morador local que parte em busca da recém-desaparecida amiga de infância Cora Fisher (Hannah Margetson).
A casualidade dos eventos e decisões que colocam a trama em movimento pode gerar algum incômodo — tudo fica parecendo meio fortuito, aleatório. Todavia, é coerente com a estrutura que o filme busca reproduzir: a de um episódio autônomo dentro de uma série, o que caracterizava cada edição das revistas pulp.
O roteiro também procura reforçar esse caráter episódico ao dispensar qualquer apresentação formal de seus protagonistas: tudo é feito pelo contexto. Exemplo disso é o fato de nenhum habitante daquela região interiorana se espantar com a criatura de aparência demoníaca — “você é o sujeito da revista Time”, diz um deles a certa altura.
Outra referência que vem diretamente do pulp é a aposta no terror — não o psicológico, sofisticado, elaborado pacientemente, mas aquele mais imediato, fundamentado em medos primitivos, viscerais, por meio de sustos, body horror e monstros rastejantes.
O problema nesse sentido é que, embora o heroi e seu antagonista, o tal Homem Torto (Martin Bassindale), sejam bem caracterizados com uso de efeitos práticos e maquiagem, outras criaturas foram desenvolvidas com efeitos digitais que sugerem que o orçamento do longa foi bastante modesto para os padrões hollywoodianos.
A opção por abraçar a influência das antigas revistas baratas e populares tem resultados que não se limitam à estética. Sem uma ameaça lovecraftiana pairando sobre toda humanidade, a história ganha escopo reduzido, concentrando-se nos personagens. Aqui, o tema da expiação da culpa permeia toda a trama, englobando os protagonistas e os coadjuvantes, como Tom Ferrell e o reverendo Nathanial Armstrong Watts (Joseph Marcell).
Uma consequência dessa abordagem que pode ter efeitos negativos sobre o público é que ela denota um recorte, algo parcial. O próprio enredo de Hellboy e o Homem Torto enfatiza a ideia ao jogar os holofotes sobre determinado elemento na biografia de Anung Un Rama, sugerindo uma história mais ampla e instigante que ainda precisa ser contada e concluída. Soma-se a isso a inevitável comparação com os filmes anteriores, especialmente os de Del Toro, com toda sua exuberância visual e narrativa. Pronto: eis a receita para que o novo longa seja encarado como menor, um tanto grosseiro e até mesmo dispensável.
Tudo isso, porém, é fruto da iniciativa de um autor para transportar ao cinema algo que ele considera essencial em sua obra: a noção de que nem toda aventura do detetive paranormal precisa ter a escala épica do universo criado por H.P. Lovecraft — que, por sinal, publicou seus contos mais famosos em Weird Tales, uma revista pulp.
Hellboy e o Homem Torto está em cartaz nos cinemas do Brasil.