Danny Boyle é um diretor que me agrada e desagrada com a mesma frequência: se em A Praia ele me maravilhou com seu roteiro e direção, em Sunshine: Alerta Solar eu quase morri de tédio. Então, quando chegou o anúncio de que ele iria fazer uma continuação de Trainspotting, sua obra prima, o medo de algo dar errado foi a primeira reação. Felizmente, posso dizer que eu estava errado.
O tempo não para
Fica claro desde a primeira cena que o tema principal do filme é a passagem do tempo para aqueles personagens e como a maturidade impactou cada um deles, que se separaram para traçar caminhos distintos e acabam se reunindo para tentarem emplacar um bordel em Edimburgo.
Do ponto de vista discursivo, Boyle aproveita para abordar outros dois temas centrais: o arrependimento e o recomeço. Todos os quatro, Renton (Ewan McGregor), Simon (Jonny Lee Miller), Spud (Ewen Bremner) e Frank (Robert Carlyle) perderam coisas importantes na vida — empregos, amigos, casamentos, filhos e liberdade — e precisaram arranjar formas de seguir em frente. O filme não faz julgamentos morais das escolhas dos personagens e trata tudo com a maior naturalidade do mundo.
O feio que é bonito
Outra coisa que chama bastante a atenção em T2 é como a direção de Boyle é certeira em transformar até as coisas mais horrendas em algo visualmente interessante — até mesmo uma tentativa de suicídio, que é mostrada nos trailers, fica harmoniosa em tela.
O diretor soube aproveitar dos avanços tecnológicos dos últimos 20 anos para aplicar alguns efeitos visuais eficientes no longa, que em vários momentos inclui elementos em CGI para ilustrar ou complementar o que a narrativa está mostrando. Boyle também une a realidade objetiva dos personagens ao universo mental deles, o que rende algumas boas referências a clássicos do cinema em certos momentos.
Lust for life
Assim como no primeiro filme, a trilha sonora de T2 é marcante. A icônica "Lust for Life", de Iggy Pop, se une a novas faixas como "Radio Ga Ga", do Queen; "Dreaming", de Blondie e a belíssima "Silk", do Wolf Alice; que embala um dos momentos mais dramáticos do longa.
Mais uma vez, as músicas dão tom e ritmo à narrativa, ajudando na construção de uma atmosfera suja, porém pulsante. Contraditória, assim como a psique dos seus personagens. Boyle escolheu as canções a dedo e o resultado, como no original, é incrível — quando ouvi os primeiros acordes de "Radio Ga Ga", o primeiro impulso foi querer cantar junto. Mas eu estava no cinema, então não fiz isso. Já em "Silk", a vontade foi de chorar como se não houvesse o amanhã. Sinal de que tudo está dialogando com o longa e com o público.
Procurando por um protetorDeus nunca chegou a tempo
Existe amor que nos salva
Mas esse não é o meu tipo
Meu amor me mata lentamente
Tão lentamente que eu quero morrer
E quando ela dorme, ela ouve a tristeza
E vê tons de preto e branco
— "Silk", Wolf Alice
Escolha a vida
Boyle recupera em T2 são os diálogos rápidos e certeiros. Aqui, o famoso discurso "Choose life", proferido por Renton no primeiro filme, ganha uma atualização para os dias de hoje, dialogando fortemente com a geração que está na casa dos vinte e poucos anos.
Escolha a vida. Escolha o Facebook, Twitter, Instagram e torça para que alguém em algum lugar se importe. Escolha reviver paixões antigas, desejando que você tivesse feito tudo diferente. E escolha assistir a História se repetir. Escolha seu futuro. Escolha os reality shows, comentários machistas e o vazamento de fotos íntimas. Escolha um contrato terceirizado em uma jornada de duas horas até o trabalho. E escolha o mesmo para os seus filhos, só que pior, e sugue a dor com uma dose desconhecida de uma droga inédita feita na cozinha de alguém. E então...respire fundo. Você é uma viciada. Então seja uma viciada, mas se vicie em outra coisa. Escolha aqueles que você ama. Escolha o seu futuro, Veronica. Escolha a vida.
Nesse momento, confesso que senti um nó na garganta e olhei para mim mesmo, pensando justamente em tudo que já foi e no que ainda pode ser daqui para frente, tentando me livrar do peso de alguns arrependimentos e me projetando para o futuro. Imagino que as pessoas que tinham a minha idade na época do primeiro filme se sentiram assim quando o discurso original foi proferido em tela.
Tudo isso é enriquecido pelas atuações incríveis do quarteto protagonista. Mais uma vez, o destaque fica nas mãos de Ewen Bremner, que consegue dosar medo, melancolia, remorso, ambição e delicadeza em Spud. Do outro lado, Robert Carlyle torna seu Frank ainda mais insano e violento e consegue fazer com que em dados momentos o público crie uma certa empatia pelo personagem. Jonny Lee Miller e Ewan McGregor fazem um trabalho honesto em Simon e Renton, mas estão longe do brilho dos outros dois colegas.
T2 é uma experiência intensa. Sensível. Engraçada. Triste. E se assistida em um momento específico da vida do espectador, transformadora. Os resultados da mudança não podem ser previstos, mas é possível afirmar que pelo menos uma grande reflexão sobre o passado, as escolhas, a vida, os arrependimentos e os recomeços irá acontecer. E que depois dela, escolhamos a vida.
T2 Trainspotting estreou em 23 de março.