No final de 2023, uma discussão começou no X (antigo Twitter): um semi-finalista do Prêmio Jabuti havia utilizado o Midjourney, inteligência artificial (IA) capaz de gerar imagens através de prompts, para ilustrar uma versão do livro Frankenstein, de Mary Shelley.
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Algumas pessoas defendiam o uso, outras nem tanto, mas o ocorrido abriu uma discussão importante: quem é o dono da criação de uma obra feita por IA?
O que é direito autoral?
Um bom ponto de partida na discussão é entender o que o termo significa. Direito autoral é o direito exclusivo do criador de determinada obra intelectual a fazer uso da mesma e, ademais, se beneficiar de quaisquer benefícios que ela trouxer — financeiro, patrimonial, etc.
As obras intelectuais registradas pela Fundação Biblioteca Nacional, parte do Ministério da Cultura, estão asseguradas pela Lei 9.610, de fevereiro de 1998 e, segundo o artigo 7º, “são obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro…”
Obras literárias, composições musicais, programas de computador e obras audiovisuais são alguns exemplos de criações protegidas por essa lei. Porém, é de se esperar que sejam feitas por mãos e cérebros humanos, mas quando inserimos o uso de IA na arte, a água começa a ficar turva.
IA e arte: uma relação de décadas
Muito antes da abertura de Invasão Secreta ser feita com inteligência artificial, a ferramenta já era usada na arte. O primeiro registro de um software capaz de gerar imagens data do final da década de 1960, desenvolvido pelo artista plástico Harold Cohen e batizado de AARON. Ele não era capaz de aprender por conta própria, portanto qualquer novo estilo artístico precisava ser codificado manualmente por Cohen.
Diferentemente de outros geradores de imagem, AARON não dependia de banco de dados, mas sim de noções gerais sobre composição de cor, estilos artísticos, etc, tudo ensinado por Cohen. Era capaz de gerar imagens em papéis reais, indo além dos zeros e uns.
Por não ser um software aberto, seu desenvolvimento encerrou em 2016 com a morte do artista. Uma coincidência sinistra, visto que poucos anos depois os softwares de geração de imagem ganharam popularidade.
Mesmo que gerasse imagens sozinho, seu conceptor era cauteloso em dizer que o software era criativo, mas, em The Further Exploits of AARON, painter, escrito para a Universidade Stanford, questionava “se o que AARON está fazendo não é arte, o que é exatamente, e de que forma, além de sua origem, difere da coisa real? Se não está pensando, o que exatamente está fazendo?”.
O uso da IA no processo criativo
Em 2021, a OpenAI lançou o seu gerador de imagem, o DALL-E e, junto com seu companheiro gerador de textos, o ChatGPT, tornou os esses modelos generativos populares e, de certa forma, acessíveis à sociedade, já que muitos são gratuitos.
A facilidade de uso, basta alguns direcionamentos (prompts) para que o software entenda o que precisa ser feito, a criação em poucos segundos e o aperfeiçoamento constante dos resultados são atrativos para as pessoas que buscam criar imagens, textos, música ou o que quer que seja. Desde 2021, muitos avanços no setor aconteceram e hoje é possível encontrar modelos generativos em navegadores, servidores do Discord e mesmo na palma da mão, nos smartphones.
Em entrevista para o Nerdbunker, a designer e ilustradora Roberta Cruz diz que enxerga a IA como “uma ferramenta disponível para auxiliar o artista”, mas que não a utiliza diariamente. Ela completa dizendo que “como ilustradora especialista em letras, a IA entra em um papel que eu chamo de ‘pesquisa pré-criativa’, que nada mais é do que aquela busca que você faz quando vem uma ideia, sabe? Pesquiso se alguém já teve essa ideia antes de mim; quais possíveis caminhos posso seguir; jogo de palavras: quais elementos me ajudarão a ativar sentimentos e sensações através dessa ideia de arte; estudo de poses e anatomia; enfim, são muitas buscas que faço quando a ideia vem.”
Porém, ela defende que dizer é inevitável que a ferramenta seja usada na arte é extremista. “Acredito que prompt nenhum me fará brilhar os olhos como uma letra perfeita feita com a brush pen. A arte se expande um lugar intrínseco e profundo para o tangível através das habilidades do artista, acredito ser pouco provável a IA atingir esse lugar, por mais detalhado que seja o prompt.”
As polêmicas envolvendo o uso de IA na arte
Voltamos ao parágrafo inicial do texto, a arte no livro de Frankenstein. Eduardo Baptistão, um dos jurados do festival, disse que “o regulamento diz que o autor responde pela originalidade, autenticidade e/ou autoria do material inscrito. Na minha opinião, a IA não se enquadra nesses critérios.”
O Mestre em Direito e Especialista em Direito Digital, Marcel Thiago de Oliveira, comentou sobre o caso para o Nerdbunker. “Ainda que no Brasil [ainda] não haja lei acerca do uso da IA, nada impede que publicações, competições ou editais estabeleçam critérios quanto à sua utilização. É o caso da própria Câmara Brasileira do Livro (CBL), que concede o Prêmio Jabuti, que vetou expressamente a participação de obras produzidas por IA na sua atual edição (66a edição, 2024).”
Este tipo de discussão não é exclusiva do Brasil. Fora daqui, 200 músicos assinaram uma carta apresentada pela Artist Right Alliance pedindo a regulamentação das IAs, visto que podem infringir direitos autorais. Já que os modelos generativos dependem de um banco de dados para criarem arte, traços de artistas, vozes, códigos-fonte de algum jogo, etc., podem ser utilizados indevidamente.
IA e direitos autorais: uma discussão legal
No seu dia a dia profissional, Roberta já teve que lidar com o uso indevido de uma arte de sua autoria. Através de uma foto enviada por uma amiga, ela soube que uma arte de sua autoria estava sendo comercializada como pôster na Avenida Paulista, em São Paulo. O problema não estava relacionado ao uso de IA, mas acendeu um alerta: não existe uma regulamentação específica para o uso da mesma. Como ela mesmo diz, “o déficit legislativo para o uso de IA, na minha opinião, realmente é um ponto crítico que deve ser revisto com certa urgência.”
Nos Estados Unidos, existe a AI Executive Order e, recentemente, no Reino Unido, o Regulamento Europeu sobre Inteligência Artificial (Artificial Intelligence Act) foi instaurado. Já no Brasil, o assunto é analisado “em diversos projetos de lei, ainda sem aprovação, como no PL 5.051/2019, que estabelece princípios para o uso da IA no Brasil; PL 5.691/2019, que institui a Política Nacional de IA; e PL 2.338/2023, que regulamenta a utilização da IA, dentre outros”, segundo Marcel. A última, inclusive, está em fase de consulta pública, e está gerando repercussão nas redes sociais após a mudança de alguns artigos considerados importantes pela classe artística.
Qual a melhor maneira de fazê-las?
Algumas redes sociais, como o Instagram, já possibilitam que o usuário identifique quando uma arte foi feita por IA, algo que demonstra a preocupação do setor privado no assunto. Entretanto, ainda é um tema complexo, onde diversas frentes precisam ser discutidas e é necessário respeitar as necessidades brasileiras.
Para uma regulamentação do tipo, Marcel diz que “normas precisam ser estabelecidas para o desenvolvimento, implementação e uso responsável de sistemas de IA de forma garantir a implementação de sistemas seguros e confiáveis e ditames para o uso ético e transparente, protegendo os direitos fundamentais e prestigiando a pessoa humana, os valores democráticos e o desenvolvimento econômico, científico e tecnológico, como, inclusive, propugnado no PL 2.338/2023.”
Que ações legais podem ser tomadas atualmente?
Como não existe uma legislação em vigor, atualmente é preciso enviar uma notificação extrajudicial ao infrator. Além disso, Roberta aponta que é importante “se resguardar e garantir legalmente a sua propriedade intelectual.” Caso aconteça um problema legal nesse sentido, é possível promover ação judicial contra o infrator e buscar indenização por direitos materiais e morais.
Para evitar que isso aconteça, é preciso cautela no uso dessas ferramentas e é importante sempre identificar quando uma arte foi feita por IA ou referenciar a ferramenta que foi utilizada no processo.
Para onde vamos?
A discussão ainda está longe de chegar a um ponto final. O assunto tramita no âmbito legislativo e pode demorar para chegar a um consenso, porém, com o aumento no uso dessa ferramenta, deve haver uma aceleração nessa resolução. Afinal, como Roberta diz, é preciso ser realista “e encarar o fato que a tecnologia está em constante evolução e que, coincidentemente, afeta um ecossistema profissional.”
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Fontes complementares: Smithsonian Magazine, The Harvard Gazette, Ponto em Comum, BBC, Autoria em Rede