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Troco em Dobro | Crítica
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Troco em Dobro | Crítica

Herói que não cativa, relações que não convencem, ação que não empolga

Daniel John Furuno
Daniel John Furuno
06.mar.20 às 11h29
Atualizado há mais de 1 ano
Troco em Dobro | Crítica

Visto no papel, o projeto parece correto: uma propriedade intelectual que já havia sido adaptada com relativo sucesso para a televisão e até rendido alguns longas-metragens e um spin-off; um astro popular, reunido com um diretor com quem está habituado a trabalhar e com um coadjuvante em ascensão; uma atual combinação de ação e humor. Na prática, porém, Troco em Dobro não funciona — e as razões são justamente as citadas neste parágrafo.

O filme se baseia em uma longeva série de romances policiais protagonizada pelo detetive particular Spenser e criada pelo norte-americano Robert B. Parker — mais especificamente, o volume Wonderland (2013), de autoria de Ace Atkins, que foi contratado pelos administradores do legado de Parker para escrever novas sequências após o falecimento do autor, em 2010. Todavia, os únicos elementos que o roteiro assinado por Sean O'Keefe e Brian Helgeland têm em comum com o material original são a ambientação em Boston, um punhado de detalhes do enredo e os nomes dos personagens.

Na trama, Spenser (Mark Wahlberg) é um ex-policial, expulso da corporação e condenado por agredir o corrupto capitão Boylan (Michael Gaston). Após cumprir pena, acaba se envolvendo na investigação do assassinato de seu antigo superior e, com o auxílio de Henry (Alan Arkin), amigo e treinador de boxe, e de Hawk (Winston Duke), um aspirante a lutador de MMA, ele segue uma trilha de pistas que revelam um plano envolvendo gangues, tráfico de drogas, a banda podre da polícia e um ambicioso empreendimento.

Ainda que o trabalho de Parker tenha tido pouca projeção internacional (no Brasil, por exemplo, alguns livros da série foram publicados nos anos 1970, ao passo que a adaptação televisiva Spenser: For Hire, produzida na década seguinte e encabeçada por Robert Urich, não chegou a ser exibida em canais abertos), ele conta com seus admiradores fiéis nos EUA. É um contrassenso, portanto, investir na aquisição dos direitos sobre uma obra apenas para descaracterizá-la — afinal, a ideia de apostar em algo conhecido é justamente explorar o apelo junto à base de fãs. Claro, a transposição de um romance para outra mídia requer cortes e ajustes. Mas mudanças radicais só se justificam quando o material requer (ou se beneficia de) atualizações ou quando os realizadores oferecem uma abordagem original. Não é o caso aqui.

Mesmo quando analisado isoladamente, à parte da fonte (que, no fim das contas, é como o público brasileiro vai encará-lo), o filme não se sustenta. Os problemas começam na construção dos personagens. Spenser é apresentado como herói que segue um rígido código de conduta, mas ele não hesita em colocar as pessoas próximas em perigo — e uma das raras ocasiões em que a tal “conduta” é supostamente demonstrada se resume a uma problemática fala da namorada, Cissy (Iliza Shlesinger), que sugere que assumir um filho é uma questão de moral, não de responsabilidade. Além disso, Wahlberg — que, nas mãos de diretores talentosos, como Martin Scorsese e Paul Thomas Anderson, consegue ter boas performances — carece do carisma e do perfil de “bom moço” necessários para entregar uma fala tão piegas quanto “É a coisa certa a se fazer” de maneira convincente.

A dinâmica de buddy cop esboçada no primeiro ato é logo descartada com igual descaso. Uma das convenções desse subgênero é ressaltar os contrastes — basta ver a dobradinhas Riggs & Murtaugh, de Máquina Mortífera (1987), e Angel & Butterman, de Chumbo Grosso (2007), ou o trio Foley, Taggart & Rosewood, de Um Tira da Pesada (1984). O que Troco em Dobro faz é tentar estabelecer um atrito entre Spenser e Hawk baseado meramente no fato de o primeiro achar os hábitos do segundo “esquisitos”. Artificial também é a ligação que se forma repentinamente entre eles, após um treino e um almoço sem qualquer troca emocional genuína. Para complicar, a certa altura, o espectador se vê muito mais engajado no pouco desenvolvido arco do coadjuvante — mérito maior de Duke, capaz de roubar a cena e ofuscar o ator principal, que do script.

Nem mesmo a ação, atributo no qual a divulgação tem se concentrado, compensa as demais fraquezas. Colaborador frequente de Wahlberg, Peter Berg é um diretor mediano, que filma sequências de luta de modo absolutamente genérico — algumas são mal coreografadas; outras, calcadas em clichês que há 20 anos já seriam considerados datados, aqui apresentados sem um pingo de sarcasmo (bandidos latinos que usam machetes em vez de armas de fogo? “Vamos resolver isso como homens”?). O ápice do terceiro ato, que se pretende bombástico, é preparado com tamanha falta de sutileza que o protagonista só falta piscar para a câmera.

Resta o humor e, de fato, o filme consegue arrancar algumas risadas. Muitos desses momentos, no entanto, derivam dos caricatos personagens de Arkin e Shlesinger — o “idoso sem filtros” e a “namorada louca” — e, assim, logo se tornam cansativos. Não bastasse isso, a melhor piada, envolvendo um gato, é imediatamente arruinada pela fala seguinte, que a explica.

Troco em Dobro reflete a mentalidade com que aparentemente foi produzido: seguindo uma fórmula que se imagina estar por trás dos blockbusters bem-sucedidos. O resultado não poderia ser outro: um longa sem imaginação, sem personalidade, esquecível, dispensável.

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