Com a expansão da indústria de games, é natural que essa área desperte o interesse do cinema e da TV. Nos últimos anos, as telonas e streamings foram inundados por adaptações de grandes jogos, mas uma das obras mais interessantes sobre o assunto parte de uma premissa original. Chamada Mythic Quest, a comédia da Apple TV+ acompanha o cotidiano de um estúdio de games em um retrato carinhoso dessa cultura, mas consciente dos problemas.
Caminhando para a terceira temporada, que chega em novembro, a produção é uma pérola pouco falada – inclusive por nós aqui no NerdBunker. Porém, como nunca é tarde para começar, trouxemos esse papo aqui para citar algumas das razões pelas quais a série merece ser vista.
O que é Mythic Quest?

O projeto da série nasceu na Ubisoft, desenvolvedora responsável por franquias como Assassin's Creed, Just Dance, Far Cry e muitas outras. Interessada em uma produção que retratasse a indústria de games, a empresa entrou em contato com Rob McElhenney, Charlie Day e Megan Ganz, trio conhecido pela famosa comédia It’s Always Sunny In Philadelphia. Essa parceria, no entanto, não foi empolgante à primeira vista.
Em entrevista à EW, McElhenney revelou que, em um primeiro momento, recusou a oferta por não ter interesse em uma indústria retratada de forma tão negativa quanto a de games. Ele só reconsiderou essa posição ao visitar um dos escritórios da Ubisoft em Montreal e conversar com a equipe por trás dos jogos. Ver tantas pessoas diferentes nos mais vastos departamentos unidas pela paixão pelos games o deixou apaixonado, mas foi uma informação chocante que o fez mudar de ideia.
Cocriador, produtor, diretor e protagonista de Mythic Quest, ele confessou que ficou chocado ao descobrir que GTA é uma franquia mais lucrativa do que Star Wars. Segundo ele, é inacreditável que algo tenha se tornado tão grande sem que o grande público conheça seus criadores:
“Todo mundo sabe quem é George Lucas ou Steven Spielberg, mas quem criou GTA? (...) Não sei a resposta para isso, não conheço ninguém que tenha trabalhado em GTA. Então, quando estávamos conversando, Charlie, Megan e eu, ficamos 'uau, esse é um contraste fascinante'.”
Essa ideia, somada às situações que só poderiam ser extraídas de um ambiente de trabalho como um estúdio de games, fez o trio aceitar a missão. O primeiro passo da trupe, que era leiga no funcionamento de uma empresa desse tipo, foi passar dias conversando com trabalhadores da área para ter uma noção realista dos altos e baixos dessa profissão. O segundo foi a união de uma sala de roteiristas dividida entre especialistas e leigos:
“Quando tivemos o sinal verde, preenchemos nossa sala de roteiristas metade com gamers, desenvolvedores ou executivos, que trabalharam na indústria, e a outra metade era composta por pessoas que nunca jogaram na vida. Então pudemos fazer um show que todo mundo poderia assistir.”, relembra Rob McElhenney.
E é daí que a série tira sua grande força.

Uma série sobre games para quem não joga
Não é preciso ser gamer para curtir Mythic Quest, e abro mão da impessoalidade no texto para dizer isso por experiência própria. Aqueles que têm uma bagagem limitada de videogames, como eu, ou sequer tocaram em um controle, podem facilmente aproveitar a produção.
Uma lógica até comum, já que não é preciso ser policial para curtir Brooklyn Nine-Nine, vender papel para virar fã de The Office ou vender vestidos de noiva para se sentir parte de Tapas & Beijos. O que torna a produção digna de atenção é a forma como ela conta histórias divertidas e engajantes com um humor afiado carregado por personagens interessantes.
Por mais ancorado na comum estrutura de comédias em ambientes de trabalho, o enredo é criativo ao ponto de encontrar uma voz própria mesmo em um subgênero tão explorado. O roteiro é permeado por um humor irônico e por vezes absurdo, mas a direção conduz os episódios sem cair nas armadilhas dessa abordagem. Especialmente porque as histórias também trazem momentos surpreendentes, e até emocionantes, de uma forma que nunca soa deslocado dentro da comédia.
Mythic Quest faz bonito até mesmo quando quebra as próprias regras e interrompe a trama principal da temporada para contar uma história aparentemente isolada. Nos dois anos anteriores, a produção trouxe capítulos quase independentes que fogem dos eventos principais, mas os complementam de uma forma que seria uma injustiça rotulá-los como “isolados”.

São desvios surpreendentes que deixam claro como uma produção aparentemente específica pode se tornar universal. Ainda assim, é na especificidade de se passar no universo de um estúdio de games que a série encontra sua outra grande força.
Uma série de games para gamers
Por mais que Mythic Quest seja para todos, há situações e enredos que são melhor aproveitados para quem já faz parte da comunidade de games. A produção começa quando o jogo que dá nome à história já é um sucesso bem estabelecido, então não testemunhamos a criação da produção do zero. Porém, o processo de manutenção do game e sua comunidade são um prato cheio para uma história que extrapola situações comuns no mundo real.
Só na primeira temporada, é possível ver não apenas o cotidiano dos desenvolvedores do jogo, como também streamers, feiras de jogos e torneios. Esses aspectos criam possibilidades narrativas que não seriam encontradas de outra maneira. Isso pode ser visto na forma honesta e apaixonada com que a produção torna elementos como criatividade, companheirismo e senso de comunidade as principais forças de sua história.
Por outro lado, a Mythic Quest também brilha ao trazer os pontos negativos do universo gamer. A produção coloca o dedo em feridas de uma forma honesta, usando alguns absurdos do mundo real para fazer humor. Logo nos primeiros episódios, é possível ver diferentes exemplos do lado tóxico da comunidade e da própria indústria, em uma sátira afiada que não se esquiva desses problemas. E vai além, entregando soluções que fogem do típico final feliz que é idealizado dentro da ficção.

Em entrevista ao CS, a cocriadora Megan Ganz relembrou que os esboços baseados nas entrevistas com trabalhadores da indústria já buscavam abordar essas questões. Entre eles estavam as dificuldades que as mulheres enfrentam no local de trabalho, sindicalização e principalmente crunch – nome dado ao período em que desenvolvedores fazem horas extras para entregar um jogo dentro do prazo. Segundo ela, a Ubisoft apoiou a iniciativa:
“Nesta série, queríamos que os personagens soassem como pessoas reais e, para fazer isso, precisávamos que o mundo em que eles vivem também parecesse real. Seria falso não tocar nessas coisas, mas felizmente a Ubisoft sempre foi atrás de nós explorando os assuntos onde há espaço para crescer.”
Dessa forma, Mythic Quest faz um retrato tão apaixonado quanto consciente do universo que decidiu representar. É uma abordagem bem dosada que permite a aproximação de pessoas que sequer fazem parte dessa comunidade e garante o triunfo da produção. Nas palavras de Rob McElhenney:
"O maior elogio é as pessoas surgirem dizendo 'não me importo com videogames e ainda assim amei a série'. E do outro lado disso, há pessoas dizendo 'amo games, achei que vocês iam estragar isso, fiquei realmente ansioso e realmente amo a série'".
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As duas primeiras temporadas de Mythic Quest estão disponíveis na Apple TV+. A terceira tem estreia marcada para 11 de novembro.