[Aviso: spoilers abaixo!]
“Fiquei muito satisfeito com o final de O Senhor dos Anéis. Falando de previsibilidade: mesmo criança, eu tive a percepção de que o anel seria atirado no vulcão. Não deixariam Sauron conquistar o mundo. Mas ele [J.R.R. Tolkien] me surpreendeu com o fato de que Frodo não pôde fazê-lo. (...) Daí veio o expurgo do Condado. Eu tinha 13 anos de idade e, lendo aquilo, não entendi. Eles venceram — por que ainda havia tantas páginas depois? Mas fui relendo os livros de tempos em tempos, e, a cada vez, aumentou meu apreço pelo que Tolkien fez. Foi uma espécie de elegia sobre o preço da vitória. Hoje, penso que o expurgo do Condado é uma das partes essenciais da narrativa, que confere a ela profundidade e ressonância, e eu espero conseguir oferecer um final similar.”
A fala é de George R.R. Martin, em entrevista à revista norte-americana The Atlantic, em julho de 2011. Considerando a hipótese de que a derradeira temporada de Game of Thrones de fato seguiu, ao menos em linhas gerais, o que o escritor tem planejado pela frente para o grand finale de As Crônicas de Gelo e Fogo, é possível enxergar alguns paralelos com a saga da Terra Média. O que logo salta aos olhos é a ideia de jogar com as expectativas, entregando exatamente o que o público deseja, porém, de maneira inesperada. Na série, isso se traduz na morte do Rei da Noite, perpetrada não pelos heróis evidentes, Jon (Kit Harington) ou Daenerys (Emilia Clarke), mas por um elemento-surpresa, Arya (Maisie Williams).
Nesse sentido, tudo o que sucedeu a derrota dos Outros pode ser visto como “o expurgo do Condado”. O trecho ao qual Martin se refere é provavelmente desconhecido da maioria dos fãs da versão cinematográfica de O Senhor dos Anéis, já que a trilogia de Peter Jackson deixou de fora esse capítulo. Nele, com a destruição do Um Anel, Frodo, Sam e companhia voltam à sua terra natal, apenas para encontrá-la tomada por estrangeiros.
A “elegia sobre o preço da vitória” apresentada em The Iron Throne, último episódio de GoT, foi mais complexa e dramática que a protagonizada pelos hobbits. Embora a guinada da khaleesi rumo ao despotismo tenha carecido da motivação de peso que a personagem pedia, ela serviu para levantar uma das discussões centrais na reta final da série. A linha tênue que separa o bem do mal, o líder resoluto do tirano, ilustrada pelas ações drásticas em The Bells, aqui foi expressa nas falas concorrentes de Tyrion (Peter Dinklage) e Dany a Jon. Como o anão observou, a escolha por um lado ou outro coube ao Rei do Norte, que enfim resolveu seu dilema entre o dever e o amor, algo que vinha sendo adiado desde que Olly (Brenock O'Connor) acertou aquela flechada fatal em Ygritte (Rose Leslie), em The Watchers on the Wall (S04E09).
Dentre os desdobramentos da decisão de Jon, um em particular acabou levantando questões que ficarão sem respostas — possivelmente, consequência da necessidade de trazer a narrativa a um encerramento sem tempo hábil para amarrar todas as pontas, fazendo com que muitas das subtramas fossem simplesmente abandonadas. A reação de Drogon à morte de Dany ofereceu uma imagem poderosa; entretanto, sugeriu que o dragão não poderia atacar um Targaryen (apesar de nos livros existir esse precedente) ou então que a criatura possuiria um nível de inteligência muito superior ao indicado anteriormente, sendo capaz de compreender que o Trono de Ferro foi a verdadeira causa da ruína de sua mãe.
Quanto à assembleia de lordes e a instituição de um novo modelo de escolha do rei, é possível imaginar que bem antes das semanas que passou trancafiado na cela em Porto Real, Tyrion já se preocupava com a questão da sucessão em Westeros — no mínimo, desde Beyond the Wall (S07E06), quando chegou a discuti-la com a Nascida da Tormenta. Talvez a opção por uma espécie de “democracia da nobreza” tenha sido outro “bom meio-termo”, já que, escaldado, o anão sabia que os senhores das grandes casas não aceitariam uma eleição popular, do mesmo modo que a ideia de “quebrar a roda” da transferência hereditária de poder teria de ser o argumento central para convencer Verme Cinzento (Jacob Anderson).
Por sua vez, o retorno de Jon à Patrulha da Noite foi um fim significativo, não somente por conferir um caráter circular à sua jornada e promover o reencontro com Tormund (Kristofer Hivju), Fantasma e o “verdadeiro Norte”, mas também por mais uma vez colocar um Targaryen secreto na Muralha, assim como havia acontecido com meistre Aemon (Peter Vaughan).
Se o desfecho trágico de Daenerys não chegou a surpreender, o mesmo não pode ser dito da ascensão de Bran (Isaac Hempstead Wright) ao posto de novo governante. De certo modo, a importância do jovem Stark na conclusão de GoT já havia sido sugerida por seu papel de destaque nos planos do Rei da Noite e pela fala de Samwell (John Bradley) equiparando morte e esquecimento, em A Knight of the Seven Kingdoms (S08E2). Afinal, se o objetivo do líder dos Outros era “apagar o mundo” e instituir “uma noite sem fim”, a chegada de um novo dia e a manutenção do reino dos homens teria de incluir, necessariamente, o detentor de sua memória. De um ponto de vista metalinguístico, também faz sentido que Martin, um escritor, queira defender a noção de que “não há nada no mundo mais poderoso do que uma boa história”. Ainda assim, não deixou de ser uma decisão polêmica por desbancar outros candidatos preferidos pelos espectadores.
Em contrapartida, os destinos dos demais personagens parecem ter sido escritos para agradar a audiência: Tyrion de volta ao cargo de Mão do Rei, à frente de um conselho integrado por Bronn (Jerome Flynn), sor Davos (Liam Cunningham) e o agora meistre Sam; Brienne (Gwendoline Christie) como comandante da Guarda Real; Podrick (Daniel Portman) nomeado cavaleiro; Sansa (Sophie Turner) coroada Rainha do Norte; e Arya em uma nova jornada de descobertas. Se por um lado a direção convencional dos showrunners David Benioff e D. B. Weiss (também responsáveis pelo roteiro) acabou tornando algumas dessas sequências um tanto burocráticas, por outro, ganhou pontos ao encerrar a série com uma tomada remetendo às cenas de abertura: um grupo cavalgando para fora da Muralha, em direção à floresta.
Por fim, em tempos de petições online de fãs insatisfeitos, infelizmente ainda é preciso lembrar que nenhuma opinião, fundamentada ou não, pode se pretender mais válida do que a obra em si. Assim como As Crônicas de Gelo e Fogo cresceram a tal ponto que Martin está há oito anos tentando terminar seu sexto e penúltimo volume, também Game of Thrones ganhou proporções gigantescas e, com isso, passou a alimentar expectativas impossíveis de atender. Independentemente de seu final e dos eventuais tropeços, a série merece ser julgada pelo conjunto. GoT fez história na televisão, elevou o gênero fantasia, apresentou personagens e momentos inesquecíveis e, ao longo de quase uma década, nos submeteu a uma torrente de sentimentos — inclusive frustração.