Filmes baseados na vida de ícones da música estão cada vez mais populares e, em parte, isso se deve a um padrão bem-sucedido. Muitas dessas produções acompanham a ascensão, queda e renascimento de artistas ao som de seus maiores hits. No momento em que Hollywood surfa nessa onda, Tár nada contra a maré e apresenta um drama elegante que quebra as regras das cinebiografias musicais com muito orgulho.
O longa apresenta Lydia Tár (Cate Blanchett), maestro que está no auge da carreira e se prepara para comandar a famosa Orquestra Filarmônica de Berlim na gravação de um concerto. O planejamento para o grande dia é entrelaçado ao cotidiano da compositora, e se desenrola em um estudo de personagem que subverte as convenções dos “filmes de música” – para o bem, e para o mal.
Primeiro projeto do diretor e roteirista Todd Field (Pecados Íntimos) em mais de 15 anos, Tár inverte a lógica desse tipo de história ao colocar os holofotes em uma figura que já atingiu o sucesso. O longa rejeita contar a ascensão, resumida em um diálogo nos primeiros minutos, para mostrar o dia a dia da musicista.
Ao invés do glamour do desbravamento desse mundo, a produção foca em episódios corriqueiros, como almoços com outros maestros, aulas ministradas em escolas renomadas e até viagens a trabalho. Aparentemente sem conflito, essa etapa inicial enfatiza os momentos íntimos de Lydia Tár para demonstrar as crenças e práticas da protagonista, fornecendo as primeiras peças do quebra-cabeças que é esse estudo de personagem.
Tal mergulho é conduzido brilhantemente por Cate Blanchett. A atriz usa toda sua experiência para pintar o retrato de uma personalidade absurdamente talentosa e profundamente falha com um equilíbrio invejável. É uma performance cuidadosa, que sabe quando deixar cada uma das facetas da personagem falar mais alto. Uma tradução da complexidade apresentada no texto em uma composição que nunca erra o tom.
Nesse ponto, a música aparece com uma função maior do que simplesmente “enfeitar” o drama. Todd Field é sagaz ao usar o lado musical da vida de Tár como motor para explorar tanto suas paixões e virtudes, quanto suas falhas e pecados. Como esperado, esse foco ganha vida no cuidado especial da produção em relação ao som, que valoriza o silêncio e o utiliza com sabedoria para amplificar o impacto da música. Mas não para por aí.
Consciente de quem é a dona do show, Tár orbita Blanchett ao construir cada pedaço de seu universo em torno de Lydia. Uma escolha refletida desde o roteiro, que se nega a aprofundar qualquer personagem além da relação que mantém com a protagonista, até à fotografia de Florian Hoffmeister (True Detective), que traduz em imagens não só a distância e frieza da personagem, como a inescapável sina de ter que lidar consigo mesma – os espelhos que forçam a maestro a se encarar não são tão presentes por acaso.
Os altos e baixos de Tár

Apesar de se distanciar dos clichês das cinebiografias de astros da música, Tár se aproveita da gramática desses filmes para surpreender o público. O longa apela para o inconsciente do espectador ao apresentar situações comuns a esse tipo de história só para resolvê-las de forma contra-intuitiva. Movimento corajoso que cativa o público a acompanhar como Lydia vai lidar com problemas que normalmente são omitidos em outras produções.
Uma saída que ajuda a pintar um retrato complexo da protagonista – fictícia, vale lembrar –, ao contrário do tom desnecessariamente higienizado que muitas cinebiografias adotam para agradar aos fãs dos músicos do mundo real.
Os problemas começam quando Field leva essa ruptura ao extremo. O roteiro não faz a menor questão de traduzir o universo da música clássica a leigos, o que até não seria problema se cenas inteiras não fossem construídas em cima de diálogos a respeito do assunto.
Narrativamente, Tár tem um ritmo desbalanceado que gira em torno de situações de forma repetitiva. Ainda que essa abordagem seja proposital e busque se justificar no explosivo terceiro ato, a teia construída em torno de pessoas e eventos tece fios mais por vaidade e ostentação do que, necessariamente, para tornar a história mais poderosa.
Essa combinação exige do espectador um grau de investimento e paciência que pode não ser compensado pelo estrondo intimista de um clímax tão instigante quanto angustiante. A única garantia que o longa oferece é a de provocar o espectador a refletir sobre a jornada de Lydia Tár e os temas discutidos por ela. Uma sinfonia agridoce que pode ser inspiradora ou enfadonha, mas que dificilmente sai da cabeça.