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Sandman – 1ª Temporada | Crítica
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Sandman – 1ª Temporada | Crítica

Série da Netflix faz jus à HQ clássica mesmo sentindo a pressão do legado que tem a carregar

Gabriel Avila
Gabriel Avila
05.ago.22 às 09h00
Atualizado há mais de 1 ano
Sandman – 1ª Temporada | Crítica

Sandman é uma franquia que atingiu um raro status de aclamação universal. É muito fácil se encantar, horrorizar e emocionar – muitas vezes ao mesmo tempo – com a história criada por Neil Gaiman, Sam Kieth e Mike Dringenberg nos anos 1980. A obra carrega um nível de excelência tão grande, que o medo do fracasso impediu diversas tentativas de levar essa história para outras mídias por mais de 30 anos. Essa espera chega ao fim com uma série da Netflix, que faz jus ao material base, mesmo sentindo a pressão do legado que carrega.

Assim como na HQ, o seriado começa no início do século XX, quando um grupo ocultista chamado Ordem dos Antigos Mistérios decide capturar a Morte. O ritual dá errado e eles aprisionam Sonho, entidade responsável por cuidar do mundo dos sonhos.

É a partir desse ponto que a história começa a acompanhar Morfeu, o Lorde dos Sonhos, na jornada para se libertar e recuperar objetos roubados por seus captores. Pelo caminho, a história estabelece todo um universo que, mesmo situado em um mundo como o que habitamos, é também povoado por criaturas mágicas, demônios, corvos falantes e encarnações de conceitos como Morte, Sonho, Desejo e Desespero – entidades chamadas Perpétuos.

Desde os minutos iniciais, é possível sentir o apego que a série Sandman tem para com o quadrinho. É notável o esforço da produção em recriar a magia da publicação em todos os aspectos, desde dar vida a personagens, criaturas e cenários, até a recriar vários de seus diálogos palavra por palavra.

Em um primeiro momento, esse apego gera uma sensação de segurança para quem já conhece a obra, ao demonstrar que os responsáveis pela adaptação conhecem e dão o devido respeito ao material original. Mais do que um prato cheio para fãs puristas que querem uma tradução fiel entre mídias, esse cuidado do time liderado pelo showrunner Allan Heinberg mira em manter intactos os pontos que tornaram essa história tão memorável para gerações de leitores.

Tal esforço é recompensado pela forma bem-sucedida com que a produção dá vida a toda a gama de elementos de Sandman, sem que nada pareça fora de lugar. É um grande desafio encaixar paisagens oníricas como o reino dos sonhos ou o próprio inferno, em uma trama situada no mundo cotidiano, um obstáculo enorme que os próprios quadrinhos não tinham, uma vez que as ilustrações cumprem o papel de derrubar a barreira do realismo.

É claro que qualquer produção de fantasia exige certo nível de suspensão de descrença e misturar diferentes mundos na mesma obra não é algo inédito. Porém, a natureza de Sandman exige um requinte e uma riqueza de detalhes que poderiam arruinar o projeto caso fossem ignoradas. Um exemplo disso é a eficiência da computação gráfica, que mesmo nos momentos em que deixa a desejar, não torna a experiência enfadonha.

Além do já citado capricho técnico, Sandman faz bonito quando o assunto é o fantástico trabalho do elenco principal. Em sua grande maioria, os atores se mostram escolhas certeiras para os papéis, com atuações de altíssimo nível independente do tempo de tela.

No elenco principal, destacam-se o Sonho de Tom Sturridge, o Coríntio de Boyd Holbrook, a Lucienne de Vivienne Acheampong e a Rose Walker de Vanesu Samunyai. Pilares dessa narrativa, o quarteto brilha ao usar bem o espaço disponível, mesmo com papéis tão diferentes. Os dois primeiros são encarnações de conceitos abstratos, a terceira uma espécie de “voz da razão” no meio de todo esse caos e a última uma humana, combinação que aproveita o melhor da natureza de cada um para sempre trazer novos desdobramentos à trama.

O mesmo pode ser dito de atores com menos tempo de tela. Seja em alívios cômicos como Matthew e Merv (dublados por Patton Oswalt e Mark Hamill), ou até mesmo Perpétuos que surgem como participações especiais. É o caso da encantadora e vibrante Morte de Kirby Howell-Baptiste, ou de Mason Alexander-Park como Desejo, que se faz tão fascinante quanto misteriosa.

Esses elogios também servem para outros nomes da equipe, como Gwendoline Christie (Lúcifer), David Thewlis (John Dee), Stephen Fry (Gilbert), Joely Richardson (Ethel Cripps) e especialmente Charles Dance (Roderick Burgess). Os atores entregam performances afiadas que demonstram na prática o quão rico é o universo de Sandman, cuja história é tão forte que se sustenta mesmo quando deixa seu protagonista de lado e volta seu foco para outros personagens tão interessantes quanto.

O problema é que esse apego excessivo à HQ também age como limitador. A primeira grande história da temporada – que adapta o arco Prelúdios e Noturnos dos quadrinhos – é sólida, mas parece ter medo de tomar qualquer decisão que fuja de uma recriação quase literal dos quadros.

É claro que há mudanças em relação ao material original – todas bem-vindas e carregando uma clara vontade de preencher certas lacunas deixadas pela HQ –, mas as amarras são maiores e tornam a adaptação quase engessada. Em vários momentos há a sensação de que a série focou tanto no espetáculo visual e conceitual, que esqueceu de injetar emoção.

A maior prova disso está justamente na fidelidade, já que muitos dos momentos-chave da HQ são recriados com perfeição e ainda assim não geram o mesmo impacto. Há várias sequências em que os personagens agem de forma burocrática, como se não sentissem os riscos que as situações apontam. Simplesmente foi determinado que trilhassem determinado caminho e ponto.

É quase como se uma apatia tomasse conta de uma produção dedicada a mostrar criaturas sobrenaturais realizando feitos capazes de mudar os rumos de todo o universo. Tal sentimento é, no mínimo, contraditório, considerando que cada grande virada é encenada com a maior solenidade possível, em um esforço de tornar cada passo da jornada grandioso e épico. Isso acaba prejudicando o ritmo da primeira etapa, que parece sempre em marcha lenta para que o público possa sentir que está testemunhando algo maior que a vida.

Mas nem tudo é ônus e essa pompa traz o ponto positivo de não apressar as coisas e deixar que o espectador saboreie cada segundo. O problema está na falta de emoção com que muitos desses momentos são retratados, retirando o fator humano em uma história focada em avatares humanos de conceitos abstratos. Um problema contornado com perfeição na segunda parte da temporada.

Apatia vs sonhos ousados

Adaptação do arco Casa de Bonecas, a segunda metade da temporada deslancha e mostra o quanto Sandman cresce quando a emoção se torna o foco. Mais do que condizente com a jornada de aprendizado de seu protagonista, é como se a etapa final entendesse que é uma mídia diferente e que precisa usar seus próprios recursos para que a história possa impactar tanto quanto as HQs.

Nesse ponto, é preciso elogiar a condução dos diretores Andrés Baiz (Narcos), Coralie Fargeat (Vingança) e Louise Hooper (The Witcher), que mantém a reverência ao material base, mas com a consciência de que é preciso mais do que fidelidade para tornar uma adaptação digna. O trio imprime suspense e senso de urgência de forma que a história se agiganta como estava tentando até então.

Em retrospecto, apontar que as falhas de uma adaptação surgem de um apego excessivo à obra original faz parecer que estou reclamando de barriga cheia. Não me entenda mal, aprecio a paixão que Sandman da Netflix demonstrou com uma obra tão querida, e já estaria satisfeito caso a produção seguisse em frente com toda sua pompa e solenidade.

Por outro lado, é fato que a série atinge seu grande potencial quando respeitosamente ousa criar algo com voz própria mesmo sendo fiel ao que veio antes. A reprodução de cenários e diálogos ainda estão lá, prontos para render meses de comparações com a HQ original. Mas também surge uma gama de sentimentos genuinamente humanos que só podem ser alcançados por quem tem coragem de ousar.

É dessa forma que a primeira temporada cumpre com louvor a difícil missão de adaptar Sandman em live-action. Mesmo com sua cota de defeitos, a produção é apaixonada e caprichada o suficiente para encantar e emocionar velhos e novos fãs. Com potencial para se tornar ainda melhor em possíveis novas temporadas, a série é um ótimo lembrete de que sonhos não têm prazo de validade.

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