A série de Sandman na Netflix caiu nas graças do público e da crítica por cumprir com louvor a tarefa de adaptar uma das HQs mais cultuadas de todos os tempos. Lançada originalmente com 10 episódios, a temporada inicial teve ótima recepção e deixou os espectadores pedindo por mais.
Antes de confirmar e dar início à segunda, a saída encontrada pelo streaming foi lançar um episódio especial com duas histórias inéditas. Disponibilizado de surpresa, o capítulo adapta Um Sonho de Mil Gatos e Calíope, duas histórias isoladas entre os grandes arcos dos quadrinhos que acabaram no seriado.
Mais do que um agrado aos fãs, o episódio extra se destaca por sua natureza paradoxal. Usando histórias isoladas – e aparentemente menores –, o capítulo usa intimismo e experimentação para expandir o universo de Sandman.
[A partir daqui, spoilers do episódio extra de Sandman]
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O capítulo extra começa com um curta animado que adapta Um Sonho de Mil Gatos. A história acompanha um grupo de gatos que se reúne em um cemitério para ouvir o testemunho da Profeta. Aos colegas felinos, ela conta a experiência reveladora que teve no mundo dos sonhos ao encontrar Morfeu.
Assim como o restante da temporada, esse conto é adaptada com forte inspiração na HQ, chegando a recriar planos e diálogos com exatidão. Esse primeiro aspecto é abrilhantado com a escalação de um elenco de vozes estelar, que trouxe nomes como Sandra Oh, James McAvoy, David Tennant, Michael Sheen e o próprio Neil Gaiman. É claro que a maioria tem uma participação enxuta, mas marcante o suficiente para dar identidade ou a felinos com aparência realista, ou a humanos cujos rostos são pouco mostrados.

Porém, quem brilha mesmo nessa etapa é a animação. O curta tem direção de Hisko Hulsing, brilhante cineasta que trouxe a bagagem adquirida em produções como Undone para dar vida a Um Sonho de Mil Gatos no estilo que essa história exige. O espetáculo visual é resultado da mistura de diversas técnicas, que vão de computação gráfica a pinturas a óleo, em uma combinação que fala por si.
O aspecto visual da animação se torna fundamental se considerarmos que a trama tem como protagonista uma gata que viaja por um reino onírico onde têm visões sobre uma realidade da qual não conhece. A transição entre o mundo real e os sonhos, somada à movimentação da Profeta e dos demais bichanos, é um banquete para os olhos e já seria o suficiente para tornar esse extra uma parada obrigatória para os fãs. Por sorte, o que vem a seguir é tão poderoso quanto.

A tragédia de Calíope
A segunda metade do episódio extra de Sandman retorna ao live-action para adaptar Calíope. Ele conta a história de Richard Madoc (Arthur Darvill), um escritor em crise que recebe posse de Calíope (Melissanthi Mahut), a famosa musa da mitologia grega, que havia sido escravizada por um outro autor décadas antes.
Assim como no quadrinho, Richard falha em cortejar a musa, como faziam os autores da antiguidade, e passa a abusá-la para ter acesso à dádiva da criatividade. O processo dá certo e aos poucos ele ascende como um dos maiores autores de sua geração enquanto esconde o segredo monstruoso de seu processo criativo.
Assim como Um Sonho de Mil Gatos, esse enredo é fortemente baseado na HQs, mas aproveita seu formato para ir além em alguns aspectos. Enquanto Neil Gaiman teve de se virar para fazer caber uma história dessa densidade em 23 páginas, o episódio dispôs de longos minutos onde pôde reforçar as estruturas da trama.
Um dos pontos altos é a gradual perda da humanidade de Richard Madoc. Com maior desenvolvimento do roteiro, Arthur Darvill (Doctor Who) traz uma performance na medida para que o público entenda o que se passa nessa mente conturbada sem nunca cair nas armadilhas da caricatura ou em pegar leve com alguém no papel de um abusador.
O outro lado dessa moeda está no melhor tratamento para Calíope. A série encontra meios menos explícitos e apelativos para mostrar as mazelas que a musa passa enquanto cativa, ao mesmo tempo em que lhe dá mais agência na trama. É uma combinação que ganha força com a composição de Melissanthi Mahut (Assassin's Creed: Odyssey), que une pureza angelical e firmeza de forma que fica fácil acreditar que estamos diante de uma divindade.

A produção também faz bonito ao deixar ainda mais claras as críticas que Gaiman propôs ainda em 1990 na figura de Richard. O quadrinho não é sutil ao esfregar na cara do autor o monstro que ele é ao usar escravidão e abusos para atingir o sucesso, uma deixa que o live-action aproveita para colocar críticas tão afiadas quanto pertinentes. Se na HQ ele diz que se considera um “feminista”, faz todo o sentido que ele cite como referência autoras como Margaret Atwood (O Conto da Aia) e Octavia E. Butler (Kindred: Laços de Sangue) da forma mais cínica possível.
Elementos esses que ganham vida graças à cuidadosa condução de Louise Hooper (The Witcher). A cineasta comanda o episódio misturando o suspense necessário para manter o espectador na ponta da cadeira enquanto investiga o emocional e psicológico de seus dois grandes protagonistas. Isso é, até o Sonho resolver dar as caras.

Sonhe um sonho comigo
As duas histórias do episódio bônus contam com o retorno de Tom Sturridge ao papel de Sonho. Porém, o Perpétuo aqui assume mais uma figura de coadjuvante, o que faz bem às tramas e ao próprio. Em Um Sonho de Mil Gatos, ele é responsável por revelar a verdade para a Profeta em uma participação menor, mas que ajuda a estabelecer a vastidão dos poderes e deveres de Morfeu. Se cuidar dos sonhos de bilhões de humanos já parece difícil, imagine zelar por todas as criaturas vivas capazes de chegar ao sonhar?
Em Calíope, a presença do Sonho é mais palpável. Ele entra na história após conseguir se libertar da Ordem dos Antigos Mistérios, e só vem por ter sido convocado por Calíope. Em um dos momentos mais surpreendetes a respeito do passado do Lorde dos Sonhos, é revelado que ele foi amante da musa, com quem teve um filho. Esse rebento é Orfeu, que foi ao Inferno atrás da amada e acabou morto. Sem saber lidar com a perda, os pais se separaram e foram viver o luto à própria maneira.

De volta à vida da ex-companheira, Sonho usa seus poderes para castigar Richard para que ele tenha tantas ideias a ponto de perder o controle e enlouquecer. Por não aguentar mais, ele liberta Calíope, que por sua vez pede para que o Perpétuo também o liberte da pena. Nos momentos finais, ela deixa a valiosa reflexão que não perdoar faria com que suas feridas nunca cicatrizassem. Uma ideia que surpreende Morfeu e deixa indícios do que deve acontecer em uma possível segunda temporada.
É importante destacar que apesar de plantar uma semente para o futuro, o sucesso do episódio extra está justamente em contar histórias autocontidas. Honrando um dos grandes charmes da HQ, o capítulo empolga por contar pequenos causos deste vasto universo habitado por seres milenares. E o faz misturando conceitos malucos como gatos que sonham e um suspense sobre abuso com personagens da literatura clássica como protagonista. Não há nada mais Sandman que isso.