A vingança é um tema recorrente na literatura, tendo como uma de suas raízes a lenda de Amleth. A história de como um jovem príncipe dedicou a vida a vingar a morte do pai, causada por um plano do tio para ficar com o reino, é tão influente que ecoa em obras que vão das peças de Shakespeare, até O Rei Leão. Esse conto volta às telonas com O Homem do Norte, filme grandioso que esconde poesia em um banho de sangue.
Justamente por abordar um assunto tão recorrente na arte, o longa pode até parecer uma reunião de clichês para mostrar homens se matando de forma brutal ao longo de duas horas. Porém, o roteiro do diretor Robert Eggers (A Bruxa; O Farol) em parceria com o escritor islandês Sjón é mais esperto do que isso e enriquece uma lenda milenar com questionamentos modernos.
Se o conto original – e muitas das histórias de vingança – giram em torno de uma ideia reducionista de que violência justificada é a única saída, a nova versão busca o tempo todo questionar essa noção através de dúvidas, contradições e alternativas para seu torturado protagonista.
Ainda no primeiro ato, O Homem do Norte usa a vingança como ponto de partida para vários dos temas que pretende abordar. Guerra, poder, sexo, destino e fé se misturam e são debatidas enquanto Amleth (Alexander Skarsgård) se prepara para a retaliação que prometeu ao pai, o rei Aurvandil (Ethan Hawke).
Na contramão de produções que medem o grau de heroísmo do protagonista com violência, a jornada de Amleth chega a questionar e criticar alguns dos aspectos mais tóxicos do conceito de masculinidade que parece exaltar. Não se engane pelo desfile de corpos musculosos em combates sangrentos em uma pretensa busca por glória. Eles são acompanhados por toda uma reflexão sobre como o pior do ser humano é passado de geração a geração, que teimam em repetir os mesmos erros da anterior usando tradição como desculpa.
Conforme a trama avança, os símbolos apresentados ganham diferentes significados e dão ao diretor Robert Eggers a chance de trazer doses de poesia. Entre cenas de ação viscerais e momentos de suspense com a estranheza macabra de seus trabalhos anteriores, o cineasta investe também em uma melancolia contemplativa, que ganha camadas graças a rimas visuais entre o que essas histórias costumam ser – violência e selvageria – e o que poderiam ser – uma busca por redenção e paz.
Esse embate, aliás, é colocado em tela em uma dramaticidade inspirada pelo teatro. Não são raros os momentos em que o diretor se inspira na dinâmica de um palco, deixando a câmera parada enquanto atores passeiam pelo quadro. Além de contribuir para a atmosfera épica da história, essa decisão valoriza a performance de um elenco afiado, que transita entre a melancolia poética e o suspense violento. Um feito e tanto considerando que o roteiro propõe pouco desenvolvimento para qualquer um a não ser Amleth, fazendo com que vários de seus personagens meramente cumpram objetivos para que a trama avance.
Ambicioso, O Homem do Norte chama a atenção pela forma como honra o gênero de “épico histórico” ao contar essa história da forma mais grandiosa possível. Além do elenco de peso, que conta com grandes performances de Anya Taylor-Joy, Nicole Kidman e Claes Bang, a produção se destaca com uma reconstituição histórica meticulosa, viagens por paisagens deslumbrantes e até sequências oníricas marcadas pelo uso certeiro de computação gráfica para dar vida a elementos sobrenaturais da cultura nórdica antiga.
Por um lado, isso parece uma evolução natural do trabalho de Eggers, especialmente por trazer várias de suas assinaturas. Elementos como isolamento na paisagem rural, surrealismo e até toques de humor mórbido são encaixados sem dificuldade nessa história cheia de ação.
Por outro, há um claro problema de ritmo que compromete a imersão. Não são poucos os saltos temporais sem muita explicação que parecem simplesmente pular a história para o próximo evento de interesse. A divisão por capítulos diminui a estranheza, mas não apaga a sensação de que uns bons minutos foram cortados para que a história corresse.
Ainda assim, vale notar que esse truncamento do ritmo vai diminuindo conforme o andamento da história, que tem um terceiro ato poderoso que pouco sofre desse mal. Uma questão importante, já que toda a jornada foi claramente pensada para desembocar em um final imponente, planejado para agradar tanto quem chegou até ali esperando por porrada, quanto por quem se encantou pelo debate proposto pela história.
No fim das contas, O Homem do Norte se sai muito bem dentro da proposta de blockbuster de ação comandado por um autor com visão particular. Mesmo tropeçando pelo caminho, o filme propõe um espetáculo grandioso e artístico capaz de invadir o circuito comercial como um urso-lobo em pele de cordeiro e prova que mesmo uma lenda antiga é capaz de encantar e fazer pensar um milênio depois.