Há muito tempo a humanidade questiona a possibilidade de acontecer uma verdadeira revolução das máquinas, na qual robôs desenvolvem consciência própria, começam a ser capazes de pensar, filosofar, exigir direitos e, basicamente, se tornam seres vivos. Isso em uma perspectiva otimista, já que também há chances de eles se rebelarem completamente e extinguirem a vida humana.
É exatamente este o questionamento abordado em Detroit: Become Human, da Quantic Dream, desenvolvedora responsável por títulos como Heavy Rain e Beyond: Two Souls. Como eles, o novo jogo também é completamente voltado para o aspecto narrativo e cinematográfico, além de focar nas escolhas que você faz, ajudando a decidir o destino de cada personagem.
No papel, o conceito é ótimo e existem diversos exemplos de jogos no mesmo estilo que já deram certo, como The Walking Dead, The Wolf Among Us e tantos outros. No entanto, na prática, as coisas saem um pouco dos trilhos, o que pode atrapalhar ou até estragar a experiência como um todo.
Penso, logo existo
O ano é 2038 e androides agora são comuns nas ruas, nas casas e nas empresas. Pouco a pouco, alguns destes robôs começam a perder o controle, questionar as ordens de seus donos e até a demonstrar o que parecem ser emoções. Os humanos passam a chamá-los de Divergentes e, claro, entendem isso apenas como um erro imprevisto da programação, acreditando que podem representar um risco na segurança das pessoas. Mas e se for algo mais?

Acompanhamos a trama pela perspectiva de três androides: Connor, interpretado por Bryan Dechart (True Blood, Remanescentes: Esquecidos por Deus), Kara, interpretada por Valorie Curry (Bruxa de Blair, Veronica Mars) e Markus, interpretado por Jesse Williams (Grey’s Anatomy, O Segredo da Cabana).
Como já é esperado de um jogo da Quantic Dream, tudo o que fazemos ou deixamos de fazer tem consequências, que podem resultar na morte não apenas dos protagonistas, como também de outras pessoas ao redor. Cada decisão ou ação leva a uma ramificação diferente da história e, ao fim de cada capítulo, vemos um diagrama que nos dá uma ideia de quantas possibilidades existiam naquele trecho.

Isso não apenas dá peso para tudo o que fazemos, como também nos ajuda a ficar imersos na história e nos personagens, que são todos bem trabalhados, na maior parte do tempo. É interessante ver como eles mudam durante o progresso da campanha e como afetam as outras pessoas, principalmente Markus, que foi meu protagonista preferido e, na minha opinião, o que teve o melhor desenvolvimento.
Quem gosta de filosofia terá um motivo a mais para apreciar a jornada, já que as questões existencialistas são fortes e frequentes. O que significa estar vivo? Um robô pode mesmo ter emoções? Ter empatia por uma máquina faz sentido? O que é ter uma identidade e ser alguém? Até que ponto nós somos nós mesmos ou nos tornamos outra pessoa?
Em termos estéticos, o game também impressiona. Ele apresenta melhorias para o PlayStation 4 Pro, mas mesmo no console tradicional, que foi onde joguei, o visual é incrível, tanto pela animação fluida quanto pelo realismo dos modelos, o que também ajuda bastante na imersão.
Outro ponto que merece destaque é a localização brasileira. Assim como o jogo contou com a atuação de grandes nomes do cinema, como Clancy Brown e Lance Henriksen, dubladores nacionais de peso também marcam presença, como Wendel Bezerra, Carlos Campanille, Alfredo Rollo, Vagner Fagundes e muitos outros. Apesar de algumas partes parecerem fora de sincronia, o fato de vozes tão familiares e conceituadas estarem lá só dá mais valor à obra em geral.

Só um jogo
Quem jogou Heavy Rain, vai saber bem como é o esquema: quando não estiver fazendo decisões que vão definir o rumo de sua vida, você vai fazer atividades banais, como carregar coisas, ler revistas e limpar a casa. Mas, enquanto a narrativa e a apresentação são dignas de Hollywood, é justamente no lado “jogo” que o título peca.
O principal problema é que até as ações mais simples não são feitas com comandos intuitivos. Enquanto em outros jogos você só aperta um botão para abrir uma porta, por exemplo, aqui é necessário uma sequência de movimentos um pouco mais complexa com o analógico direito. A ideia é “simular” o que o personagem faz, mas não funciona. Pelo contrário: pode ser uma frustração que tira a sua imersão. Durante a maior parte do tempo, isso não chega a ser um estorvo, mas é justamente nos momentos mais importantes e decisivos da história que isso atrapalha. E muito.

Um exemplo é no começo da história de Kara, quando ela tenta se esgueirar por alguns policiais. Uma ação disponível neste trecho é abrir um guarda-chuva para se disfarçar – algo que, na vida real, faríamos sem dificuldades. No jogo, no entanto, é necessário segurar dois botões em sequência, que você não sabe quais são. O intervalo para acertar o comando é bastante curto, então, se você erra, a androide é vista, levando a um conflito que deveria ser simples de evitar.
Aqui vai outro exemplo ainda mais prático: imagine que você está segurando o controle em suas mãos. O jogo pede para que você segure o R1, então você, provavelmente, vai usar seu indicador direito para isso. No entanto, para continuar a ação, é necessário segurar para cima no analógico direito, então você vai usar seu dedão direito. Aí ele pede um terceiro comando, que precisa ser feito sem soltar os outros dois: apertar repetidamente o botão Quadrado. Que dedo você usa para fazer este comando infeliz?
Outro comando maluco que o jogo pede algumas vezes é balançar o DualShock 4 para os lados ou para cima. Um personagem bem importante acabou morrendo em minha campanha, simplesmente porque não estava preparado para fazer isso em uma fração de segundo durante uma fuga, afinal, quando jogamos, normalmente descansamos nossas mãos na mesa, nas pernas, no braço da cadeira – dificilmente estamos prontos para dançar balé com o controle.

Apesar desses obstáculos, consegui atingir boa parte dos objetivos que eu tinha na história. Até tentei jogar uma segunda vez, para tentar outras das inúmeras ramificações da história, mas ter que repetir as mesmas atividades fúteis da primeira vez e acertar os comandos que eu tinha errado antes é uma tarefa maçante e que não vale o esforço. Sinceramente, acho que o game seria muito mais proveitoso sem esses controles esquisitos.
Experiência única?
No fim das contas, Detroit é ótima uma experiência cinematográfica que acaba prejudicada por parte de seus (poucos) elementos de jogo. Ainda assim, é um título muito interessante e que eu recomendo, principalmente para quem gosta de games com foco narrativo ou de filosofia existencial.
A trama, os personagens e o universo do jogo são todos interessantes e bem desenvolvidos, fazendo desta jornada um prazer de acompanhar. No entanto isso provavelmente só vale para a primeira vez que jogar, mesmo com tantas possibilidades de acontecimentos, o que é uma pena. Infelizmente, fazer tudo o que o game tem para oferecer exige muito mais paciência do que vontade.
Detroit: Become Human será lançado em 25 de maio, exclusivamente para PlayStation 4. Este review foi feito com uma cópia do jogo cedida pela Sony.