Por mais que os gamers sejam parecidos por todo canto do mundo, os jogos mudam bastante de acordo com onde são desenvolvidos. Nada deixa isso mais evidente do que os títulos do Leste Europeu, carinhosamente lembrados por suas ideias grandiosas e execuções questionáveis - popularmente conhecidos como “slavjanks”, termo que descreve obras eslavas truncadas.
Entender que, sim, existe toda uma apreciação por trabalhos sem tanto polimento ou mecânicas afiadas é a melhor forma de apreciar Atomic Heart. O shooter russo do estúdio Mundfish é ridiculamente interessante e cativante, mas há pelo menos dois defeitos ou decisões questionáveis para cada uma de suas qualidades. Como em outros títulos similares, a graça é abraçar sua complicação e inconsistência, sem deixar de criticá-los.
Nessa aventura retrofuturista, a União Soviética dos anos 50 é uma utopia tecnológica por conta da invenção de uma substância conhecida como Polímero, capaz de uma impressionante transmissão de energia. A partir disso, a nação desenvolve sofisticados robôs para substituir seus trabalhadores, resolvendo grandes problemas de fome, moradia e mais.
As máquinas, por sua vez, são ligadas em uma rede neural compartilhada chamada Kollective. Para o cientista Dmitry Sechenov, criador do Polímero e do Kollective, o próximo grande passo é assimilar os humanos à mesma rede neural do robôs, permitindo milagres como aprendizado instantâneo, mais empatia entre pessoas e controle das máquinas.
No grande dia do lançamento do Kollective 2.0, algo dá errado quando os robôs se revoltam contra seus criadores, levantando suspeitas de sabotagem. É aí que o agente especial Sergey Nechaev, um ex-militar com ligações à Sechenov, é chamado para investigar a bagunça e encontrar o traidor da Pátria Mãe.
Constantes e Variáveis

Desde a abertura, que coloca o protagonista para explorar uma animada cidade soviética como se fosse o começo de BioShock Infinite, fica evidente que o jogo russo é inteiramente moldado pela franquia da Irrational Games. Essa característica se manifesta no tom, na narrativa, no design de mundo, e também na jogabilidade.
Isso significa que os combates equilibram armas corpo-a-corpo, armas de fogo e poderes especiais, além de certo foco em exploração de cenários por recursos e histórias paralelas, contadas em registros de áudio e texto perdidos. Atomic Heart se esforça bastante para emular a sensação de um BioShock, e ainda introduz melhorias vitais à fórmula da franquia que homenageia.
Os armamentos, por exemplo, usam tipos diferentes de munição ou de energia, o que encoraja maior rotação entre todo o arsenal ao invés de se manter confortável em uma única combinação. Uma robusta árvore de upgrades - administrada por uma robô geladeira tarada (sim) - também permite aumentar vida, dano e proficiência com habilidades desejadas, o que faz com que cada jogador tenha uma experiência mais personalizada.

Outra característica compartilhada é o apego com uma direção de arte de tirar o fôlego, mas o game russo consegue ainda superar a franquia que homenageia - o que é um feito impressionante, visto que a estética de BioShock sempre foi uma de suas maiores forças. Ao invés de manter a pegada de art deco da cidade submersa de Rapture, o jogo abraça o movimento artístico de Realismo Socialista que moldou a imagem da União Soviética, e imagina a continuidade dessa estética em um mundo retrofuturista.
O resultado é um dos visuais mais impressionantes dos games, que conquista e constantemente impressiona em todos os aspectos: desde o visual adorável e variado dos robôs, os coloridos e opulentos palácios, até a impiedosa arquitetura brutalista das instalações.
Há altos e baixos na experiência com Atomic Heart, mas seu maior acerto é ser esteticamente impecável. Do começo ao fim, o game instiga o jogador a mergulhar nessa realidade alternativa altamente intrigante, que prende a atenção tanto pela catástrofe da revolta das máquinas quanto pelo mundo além do desastre. Mas, como dito antes, nem tudo são flores.
Problemas no Paraíso do Povo

Examinar mais a fundo esse “BioShock soviético” traz à tona inconsistências na jogabilidade, no design das fases e na narrativa. É uma obra que se encontra em um limbo: é muito mais polida e bem acabada que seu típico slavjunk, como um STALKER da vida, mas ainda não redonda o suficiente como um blockbuster ocidental. A dualidade é simultaneamente seu charme e sua maldição.
Esse conflito se manifesta em todas as facetas. O combate, por exemplo, é satisfatório o bastante, com uma sensação agradável na porradaria corpo-a-corpo, nas armas de fogo e nos poderes. Ainda assim, as mecânicas não são fluídas o suficiente para lidar com tantos inimigos de uma vez. Ser cercado por robôs, sem a opção de uma esquiva decente e sendo constantemente jogado ao chão, é garantia de frustração.
Isso fica ainda mais evidente nas lutas contra chefões, os pontos mais fracos do game. São trechos que te colocam em arenas, bombando com a trilha sonora de Mick Gordon (DOOM), para enfrentar inimigos poderosos com ataques devastadores e fraquezas muito específicas, mas sempre parece que o jogador está em um ritmo diferente dos inimigos. Eles batem forte e rápido, enquanto é preciso se preocupar com economia de munição ou ter itens o suficiente para recuperar a vida perdida a cada porrada.

A narrativa também não ajuda a tirar o gosto de inconsistência. Por mais que a premissa de investigar um traidor seja bastante direta ao ponto, a campanha frequentemente se enrola e se arrasta ao ponto de que é comum se esquecer seu objetivo. Não ajuda que muitas das missões são estruturadas de forma repetitiva, em que é preciso recolher vários objetos para liberar portas que impedem o seu progresso.
O pior de tudo? O próprio jogo sabe o quão tedioso tudo isso é. Vez ou outra, há acenos para o jogador, como o major reclamando do constante vai-e-vem para coletar itens inúteis, ainda que o jogo nunca mude isso na prática, ou então afirmando que seu futuro soa como algo saído de um livro de ficção científica.
Esse é um dos casos que evidencia que o design confuso e repetitivo não é acidente, mas sim intencional. E, por conta dos diálogos que entendem isso, acaba puxando o maior problema do título.
Carniça Defumada

As piores partes são cortesia do protagonista. Toda vez que Nechaev abre a boca, algo minimamente lamentável segue. Quase como uma versão caricata de Geralt, de The Witcher, ele está constantemente enfezado, mas sua amargura raramente é ilustrada com um vocabulário vasto.
Frases de efeito, tentativas de metalinguagem, ou então seu bordão de exclamar “Carniça defumada!” para toda ocasião infeliz, fazem tudo soar como se o roteiro fosse de um blockbuster norte-americano, só que escrito por quem apenas assistiu a clássicos de ação dublados em russo.
Se tudo já não soasse estranho o bastante, há um contraste direto entre momentos mais profundos que simplesmente pegam o jogador desprevenido. Após um intenso tiroteio, por exemplo, o major pode começar a conversar com Charles - a inteligência artificial em sua luva smart - sobre a história da União Soviética, ou então debater temas cabeçudos como a imortalidade, os limites da ciência, os direitos da classe trabalhadora e corrupção.

Como toda boa obra que flerta com a mediocridade, seja pelo conceito ou pela execução, Atomic Heart não é para todos. Alguns vão se decepcionar com o ritmo e com a escrita bizarra, e outros vão se encantar com a estética perfeita desse mundo retrofuturista. As experiências mais interessantes vão surgir naqueles que entenderem os dois lados como verdade, e mergulharem em explorar as boas ideias e as decisões lamentáveis de uma aventura tão intrigante.
Atomic Heart está disponível para Xbox One, PlayStation 4, PC e Xbox Series X | S. A review foi feita com base na versão de Xbox Series X, através de código enviado pelo estúdio.