Desde o momento que você nasce e enche seus pulmões de ar pela primeira vez, existe uma única e inexorável certeza: a morte. Entretanto, no futuro no qual se passa Altered Carbon, essa característica foi eliminada quase completamente por meio de um dispositivo que é capaz de guardar toda a essência e as habilidades de uma pessoa e facilmente transferi-las para outros corpos.
Nesse cenário no qual qualquer pessoa pode se tornar imortal (a única exceção sendo quando a "morte" também envolve destruir esse dispositivo), a distribuição de renda é ainda mais desigual. Os extremamente abastados têm agora a eternidade para multiplicar cada vez mais as suas gigantescas fortunas e se afastar da realidade mundana, tanto fisicamente, construindo impérios literalmente acima das nuvens, quanto figurativamente, com a total ausência de empatia pelas pessoas que não têm a mesma sorte. São centenas de anos acumulando riquezas e conhecimento para se sentir acima de qualquer lei.
A vida é precificada: se você tem dinheiro pode manter-se sempre com a mesma aparência graças a clones reservas, fazer backup de suas memórias na nuvem ou mesmo comprar upgrades que garantam força sobre-humana. Se você não tem, pode ter que se contentar com qualquer “casca” que estiver sobrando caso sofra um acidente, e isso se sua família tiver como bancar a transferência de um corpo para outro.
Todas as dinâmicas humanas mudam nesse contexto, e conceitos como alma, divindades, pós-vida ou relacionamentos ganham novos significados. A construção de mundo da série realmente coloca o espectador naquele universo e faz inúmeros questionamentos pertinentes sobre como vemos as pessoas que amamos, o apego emocional que existe à aparência física delas, como as religiões têm que se moldar e mudar seu significado a partir do momento que humanos comuns se tornam imortais, além de fazer pensar se essa é uma realidade na qual vale a pena viver para sempre.
É nesse plano, com essas características sempre presentes, que Altered Carbon traça sua trama central. Sua história conta com elementos de investigação noir: um protagonista estoico, uma femme fatale e inúmeros vilões para tirá-lo de seu caminho. Entretanto, conforme o universo da série vai se expandindo e a narrativa mostra flashbacks que ajudam a entender os fatores que levaram a esse momento distópico, o desfecho do mistério principal — sobre o assassinato de um dos homens mais ricos do universo — é o que menos importa.
O que é realmente fascinante é começar a entender o mundo pelos olhos do protagonista, Takeshi Kovacs (Joel Kinnaman), alguém que acabou de despertar em um novo corpo após passar 250 anos no limbo pelos crimes que cometeu e o fascínio dele por Quell (Renée Elise Goldsberry), uma mulher extremamente inteligente que atua como uma espécie de mentora em seu passado e ajuda a moldar muitos dos conflitos da série. Ou mesmo conhecer cada um dos personagens secundários que passam de meras caricaturas a criaturas com anseios, medos e fraquezas bem claras, com as quais é possível se relacionar.
Kristin Ortega (Martha Higareda) é um dos melhores exemplos. Apresentada como uma antagonista irritante nos primeiros episódios, se torna mais cativante conforme as motivações dela ficam mais claras. Outro personagem que surpreende é Poe (Chris Conner), que passa de uma mera piada sobre o autor Edgar Allan Poe para alguém indispensável para Kovacs.
Essas figuras também ajudam a ampliar alguns conceitos que existem no nosso mundo, como Inteligência Artificial e Realidade Virtual, mas que em Altered Carbon ganham uma série de regras e peculiaridades próprias. Cada episódio se aprofunda mais nessas informações, mas tudo é apresentado de maneira natural e com um ritmo que não deixa o espectador perdido.
O visual da cidade onde a maioria dos acontecimentos se passa é um dos mais bonitos já feitos pela Netflix e carrega muitas semelhanças com a estética de Blade Runner. É possível entender muito sobre a vida e a melancolia de quem vive lá só de ver o céu cinza e a chuva constantemente caindo nos prédios decadentes e nas ruas mal iluminadas, repletas de enormes letreiros neon. É um cenário opressor e desesperançoso, que contrasta com as enormes mansões dos ricaços e de alguns flashbacks que mostram florestas e montanhas.
Altered Carbon não é a série mais inovadora que você vai assistir. Ela tem elementos que já vimos em outras obras cyberpunk e os diálogos muitas vezes caem em clichês. Entretanto, a construção do mundo é tão fascinante e os personagens se tornam tão carismáticos que é difícil não assistir a todos os episódios em sequência e ainda querer mais.
Altered Carbon está disponível na Netflix.