Construir um bom mistério é um dos grandes desafios da ficção. Sem uma fórmula exata que garanta o sucesso, obras desse tipo precisam de muito mais do que reviravoltas e uma explicação surpreendente para garantir a satisfação do público. Munido de ambição, Não! Não Olhe! (Nope) aceita essa tarefa nos próprios termos. Sem interesse pelo mediano, o novo filme de Jordan Peele (Corra!) propõe um espetáculo bizarro que devolve a provocação ao melhor estilo “decifra-me ou te devoro”.
São necessários poucos minutos para que a produção estabeleça a atmosfera de inquietação e estranheza que dá tom ao projeto. A trama caminha sem pressa para explicar os sinistros eventos que cercam O.J. (Daniel Kaluuya) e Emerald (Keke Palmer) Haywood, irmãos responsáveis por uma fazenda de cavalos treinados para aparecer em filmes, séries, comerciais, etc.
O filme faz desse suspense sua razão de ser, ao ponto de que cada um de seus vários elementos é colocado em cena para alimentar esse mistério. Com o claro objetivo de fazer o espectador tomar parte na investigação para caçar respostas em cada detalhe, o roteiro de Peele faz questão de trazer mais dúvidas a cada nova pista.
O intuito de confundir é tanto, que até a transição entre gêneros que Não! Não Olhe! promove é parte dessa estratégia. Isso porque cada tipo de história obedece a um tipo de regras e, ao renegar rótulos, a produção retira qualquer sentimento de previsibilidade que o público possa trazer na bagagem.
Ao se planejar nesse nível de detalhes, o longa se mostra ambicioso. Afinal de contas, é preciso coragem para bater no peito e se vender como uma experiência única. Especialmente porque a atração busca esse ineditismo justamente ao beber das mais variadas inspirações. Além das mais óbvias, que vão desde o cinema de horror, ficção científica e até faroeste, o filme passeia pelo horror cósmico da literatura e até coloca um pézinho no mundo do anime.
Se essa ideia parece ousada no papel, ela se torna ainda mais ao ganhar vida no projeto mais grandioso da carreira de Peele. Acompanhado de um design de produção invejável e a afiada direção de fotografia de Hoyte van Hoytema (Dunkirk; Tenet), o diretor comanda cada cena com o maior esmero possível. Seja na criação de quadros belos de se admirar – e horrorizar – ou de perseguições de tirar o fôlego, são vários os momentos em que Não! Não Olhe! se torna uma experiência hipnótica que promove uma ode ao cinema.
Principalmente porque a produção também toma o mesmo cuidado em relação ao som. Recebendo o devido valor por parte da equipe, a parte sonora contribui e muito para a manutenção do suspense, que raramente apela para jumpscares baratos ou gritaria para chocar na marra. Somado à trilha sonora de Michael Abels (Nós), o trabalho de áudio garante que nem mesmo fechar os olhos fará o pavor passar.
Nesse ponto, fica claro como Não! Não Olhe! é um passo ousado na carreira de Jordan Peele. Após conquistar público, crítica e prêmios com a estreia em Corra!, e buscar um caminho mais livre em Nós, seu terceiro filme busca marcar pela experiência. Se o primeiro chamou a atenção pelo cuidado aos detalhes, ao ponto de cada um de seus elementos se encaixar ao mistério e ao tema, o novo não tem medo de deixar pontas soltas apenas para pegar o espectador de guarda baixa. Justamente por crer que o conjunto da obra vai se sobressair à busca por furos de roteiro e coisas do tipo.
Essa fé se torna ainda mais latente quando o longa toma caminhos pouco usuais no segundo ato, quase se sabotando só para provar que consegue dar a volta por cima. Um desafio dentro do desafio, que faz a produção pisar fundo no acelerador e entregar um terceiro ato verdadeiramente épico ao ponto de dar inveja a muitos blockbusters de orçamento gigantesco.
Elevando todos os pontos altos a um novo patamar, o clímax se faz grandioso mesmo quando o filme toma o último desvio e o mistério dá lugar à busca pela sobrevivência. Os riscos são tão altos, que é impossível não se ver temendo e torcendo pelos personagens. A forma como tudo se desenrola traz uma adrenalina que se torna a recompensa final, que acompanha o espectador por um bom tempo após o fim da sessão.
O interessante é que um dos temas de Não! Não Olhe! é justamente como nosso apetite pelo entretenimento pode ser fonte de exploração e traumas, especialmente quando há busca por lucros. Um tema que permite a costura de versículos bíblicos escritos milhares de anos atrás, o surgimento do cinema, a exploração de atores mirins e até o circo midiático que se constrói em torno da desgraça alheia.
E é nesse ponto que o filme se torna verdadeiramente grandioso, ao colocar toda essa reflexão em prática e fazer pensar sobre espetáculo enquanto promove um. Ao invés de apontar o dedo em um viés julgador, Jordan Peele faz um apelo para que os espetáculos às custas de abuso fiquem no passado enquanto mostra, na prática, que é possível fazê-lo.
No fim, pouco importa se você vai conseguir decifrar Não! Não Olhe!. Ele vai te devorar de qualquer jeito.