Terra dos Sonhos | Crítica
Filme da Netflix com Jason Momoa entrega blockbuster infantil imaginativo e com enorme coração
Discutir o mercado de cinema pode não ser tão empolgante quanto as obras em si, mas é fundamental para entender a ascensão e queda de determinadas tendências. Por exemplo, qual foi a última vez que você viu um blockbuster live-action para crianças, que não fosse parte de uma franquia já consagrada? Ao longo da última década, esse tipo de filme parou de ser produzido, e o segmento infantojuvenil ficou dependente apenas de sagas grandiosas ou animações.
Antes de se tornar polêmica em Hollywood, o streaming foi bem recebido como uma segunda oportunidade para cineastas que já não conseguiam financiamento ou distribuição para seus trabalhos nas telonas. A questão se tornou complexa, claro, mas ainda há um fio de verdade nisso, e Terra dos Sonhos demonstra essa possibilidade para obras infantis.
O filme de Francis Lawrence (Jogos Vorazes, Constantine) não é exatamente original, já que adapta as tirinhas de Winsor McCay, originalmente publicadas semanalmente entre 1905 e 1911. Ainda assim, a obra se propõe a modernizar a essência do material-base, e criar algo novo a partir dessa inspiração.
A trama segue Nemo (Marlow Barkley), uma garota que vive uma feliz e inusitada vida em um farol com seu pai, Peter (Kyle Chandler). Juntos, eles navegam e tocam piano, e ele conta histórias sobre suas insanas aventuras como um rebelde no passado. Um dia, porém, ele é vítima de um acidente durante uma intensa tempestade, forçando Nemo a viver com seu tio, o tedioso Phillip (Chris O’Dowd).
De luto e sem a alegria de sua antiga vida, a menina passa a buscar emoção no mundo dos sonhos – e lá se depara com Flip (Jason Momoa), o antigo colega de aventuras de Peter. Por mais que ele seja um ladrão desordeiro, Nemo passa a vê-lo como sua única esperança quando descobre a existência de pérolas capazes de atender qualquer desejo – inclusive, no mundo real.
Se você já assistiu outras aventuras fantásticas, Terra dos Sonhos é bem previsível. E tudo bem, clichês são clichês porque funcionam (especialmente em obras infantojuvenis). Felizmente, o “arroz e feijão” é muito feito e saboroso, muito por conta da ótima química entre os dois protagonistas.
Em seu primeiro papel infantil, Jason Momoa enfim pode mostrar mais de seu carisma natural. Sua atitude descontraída e brincalhona não é surpresa para quem o segue nas redes sociais, mas enfim isso se manifesta nas telas, além de grunhidos e cenas de ação. Há até um quê do Grinch de Jim Carrey em sua performance como Flip, constantemente usando de piadas práticas, caretas e deboche para tirar sua pequena companheira do sério.
Marlow Barkley, por sua vez, é quem rouba a cena. Um rosto verdadeiramente novo em Hollywood, a jovem de 13 anos não se ofusca pela presença de Momoa, e cria uma Nemo com todas as qualidades que uma boa aventureira mirim precisa: sagacidade, curiosidade, e um leve desrespeito à figuras autoritárias. Além disso, ela sustenta até nos momentos mais emotivos da trama, mostrando que tem um futuro bastante promissor nas telas.
Boa parte do filme se foca na dinâmica entre os dois, mas mesmo os atores secundários conquistam em seus breves minutos em tela. Weruche Opia (I May Destroy You) faz perfeitamente o papel da antagonista como uma agente do mundo dos sonhos que persegue a dupla, com postura ameaçadora o suficiente. mas sem nunca abrir mão da ternura. Chris O’Dowd também acerta o humor seco de Phillip, um homem altamente tedioso que, gradualmente, demonstra ter se tornado assim por traumas em sua vida.
Pode não parecer, mas entretenimento infantojuvenil é altamente desafiador. É preciso atiçar a imaginação infantil, mas sem fugir de tópicos mais pesados e delicados, desde que bem adaptados para o público-alvo, claro. Terra dos Sonhos entende isso ao tratar de fantasia, imaginação, dor e luto com bastante sensibilidade e curiosidade. O resultado é uma aventura cheia de emoção, com um enorme coração.
Da mesma forma que a temática não pode ser simplificada para os pequenos, a direção também não pode deixar a desejar. Não que crianças ou jovens tenham o entendimento de cinema para analisar, mas é preciso criar imagens ousadas e cativantes, e sempre estar consciente do ritmo para não perder a preciosa atenção do público mirim. Nesse quesito, Francis Lawrence se sai muito bem.
O cineasta, que tem experiência em filmes para todas as idades, cria aqui mundos fantásticos, com boa variedade de estilos entre os sonhos e a tediosa realidade. Há apego por boas composições, estéticas agradáveis, e também por jogos de câmera dinâmicos e criativos. Não é nada exatamente revolucionário, e passa longe do estilo exagerado das obras infantis de Robert Rodriguez (Pequenos Espiões, Sharkboy & Lavagirl), mas serve como lembrete de que mesmo os espectadores mais jovens merecem trabalhos feitos com gosto e afinco.
Terra dos Sonhos não é nada inovador, mas retoma um estilo de filme que o cinema já não se importa mais em fazer. O longa mostra que ainda há importância em estimular a imaginação com aventuras grandiosas, e conquista pelos ótimos personagens e pelo visual cativante.
Por mais que as práticas dos streaming ainda gerem muita discussão em Hollywood, é bom ver que uma plataforma como a Netflix ocasionalmente demonstre que há espaço – e interesse – para projetos que vão além das grandes franquias, reboots e remakes.
Terra dos Sonhos já está disponível no catálogo da Netflix.