O Gabinete de Curiosidades de Guillermo Del Toro | Crítica

Série da Netflix assombra e encanta ao celebrar o horror em seus vícios e virtudes

Gabriel Avila Publicado por Gabriel Avila
O Gabinete de Curiosidades de Guillermo Del Toro | Crítica

Os primeiros minutos de O Gabinete de Curiosidades de Guillermo Del Toro não poderiam ser mais autoexplicativos. Eles mostram o renomado cineasta Guillermo Del Toro, grande amante e artista do horror, explicando que diabos é um “Gabinete de Curiosidades”.

Comuns entre os séculos séculos XVI e XVII, eles eram lugares ou móveis onde os donos exibiam uma coleção de diferentes objetos bizarros, raros ou com uma história a contar. É a partir dessa premissa que o diretor mexicano apresenta uma série antológica em que cada história apresenta uma “curiosidade” e sua origem.

Além de produzir e apresentar, Del Toro serviu como curador das histórias – sete episódios são adaptações – e até como corroteirista de algumas delas. Credenciais que deixam claro que o cineasta mexicano fez muito mais do que emprestar o prestígio que seu nome adquiriu com a criação de grandes momentos do gênero, como Hellboy (2004), O Labirinto do Fauno (2016), A Forma da Água (2017) e muitos outros.

Com a supervisão do diretor, o time de roteiristas e diretores criaram oito histórias isoladas que promovem uma verdadeira celebração às diferentes faces do horror. É um projeto apaixonado que se inspira abertamente em várias das pedras fundamentais para o gênero.

O formato homenageia a série Alfred Hitchcock Apresenta, e as inspirações vão de contos de H.P. Lovecraft a webcomics. Já os envolvidos têm obras como Hannibal, O Babadook, Batman, e até Crepúsculo no currículo. Uma verdadeira mistura de talentos e inspirações que deu origem a uma das melhores produções originais da Netflix até o momento.

Essa combinação explica o grande ponto forte de O Gabinete de Curiosidades: a abrangência. Independente do tipo de horror que você curta, haverá uma história – ou ao menos pedaços dela – para você. A produção não se contém e abraça vários subgêneros, que passam por demônios, alienígenas, bruxas e animais enlouquecidos. Temas que aguçam a curiosidade dos seres humanos há séculos.

Uma constante nas oito histórias – falaremos delas individualmente adiante – é o capricho técnico da produção. Cada uma delas é apresentada com um esmero de dar inveja a muitas produções de grande orçamento que chegam aos cinemas. Desde a construção dos cenários, até a confecção dos figurinos, passando por uma fotografia competente, tudo é feito para dar vida a cada um desses horrores específicos.

É de encher os olhos a quantidade de trabalho envolvida na produção de um único episódio. Apuro que potencializa o horror das situações, especialmente porque os cineastas não caem na armadilha de criar seus horrores unicamente com computação gráfica. Pelo contrário, a produção parece se orgulhar do pesado investimento feito em maquiagens e animatrônicos que tornam criaturas e ferimentos mais críveis.

Porém, se O Gabinete de Curiosidades presta reverência às virtudes do horror, ele também peca por seus vícios. Alguns dos episódios sofrem com problema de ritmo, deslizando por um equilíbrio ruim do tempo disponível. Outro problema é a repetição de alguns recursos que, por mais clássicos, acabam soando batidos por se repetir tantas vezes em uma única produção. Basta observar quantas vezes o personagem se vê em uma situação irreversível e simplesmente acorda de um pesadelo – isso sem contar os outros clichês que pipocam isoladamente pelos episódios.

Ainda assim, são problemas menores frente ao aterrorizante festival de terror promovido por Guillermo Del Toro e seus comparsas. Um projeto que une paixão e capricho ao ponto de tornar fácil deixar suas falhas de lado e apenas se divertir com suas histórias aterrorizantes.

Como O Gabinete de Curiosidades conta com oito histórias separadas, decidimos expandir essa crítica em breves resenhas de cada episódio. Você pode conferi-las abaixo:

Lote 36

Cartaz do episódio Lote 36 de O Gabinete de Curiosidades de Guillermo Del Toro
Cartaz do episódio Lote 36

Direção de Guillermo Navarro
Roteiro de Regina Corrado e Guillermo del Toro
Sinopse: “Um homem endividado mantém um depósito cheio de mistérios para vender, mas acaba se metendo em uma situação desesperadora.”

Lote 36 marca um início satisfatório, que acerta e erra quase na mesma proporção. No ponto positivo, a história propõe um estudo de personagem conduzido pelo brilhante Tim Blake Nelson (Watchmen) enquanto investiga a natureza cíclica e diversa do conceito de “mal”. Com signos que se repetem, em especial a guerra, o capítulo cria uma atmosfera de suspense que cresce até desembocar em uma espiral de respostas e horror.

O problema é que a história parece tão preocupada em estabelecer regras e explicações, que acaba pecando no quesito emoção. Ao mesmo tempo em que estabelece inquietação, a preparação para o grand finale se dedica a telegrafar respostas ao ponto de diluir o impacto de um desfecho horripilante, que fala por si só.

Ratos de Cemitério

Cartaz do episódio Ratos de Cemitério de O Gabinete de Curiosidades de Guillermo Del Toro
Cartaz do episódio Ratos de Cemitério

Direção e roteiro de Vincenzo Natali
Sinopse: “Um ladrão está de olho no túmulo de um milionário, mas vai ter que encarar um labirinto de túneis e um exército de roedores.”

Ratos de Cemitério é um bem-vindo lembrete de que horror e humor podem coexistir. Protagonizado pelo malandro Masson (David Hewlett), o capítulo retoma o tema da ganância mostrado em Lote 36 alternando entre os horrores de uma infestação de roedores com as desventuras de um bandido de quinta.

O triunfo do capítulo é o equilíbrio entre suas duas forças, usando o medo para fortalecer o riso e vice-versa. Uma conquista que deve muito à atuação de Hewlett, que dá um show nas sequências em que é o único humano, e também aos efeitos especiais. Não que alguém duvidasse do charme de animatrônicos, mas aquela ratazana gigante não seria a mesma se feita em computação gráfica.

A Autópsia

Cartaz do episódio A Autópsia de O Gabinete de Curiosidades de Guillermo Del Toro
Cartaz do episódio A Autópsia

Direção de David Prior
Roteiro de David S. Goyer
Sinopse: “Para desvendar o mistério de um cadáver encontrado na floresta, um xerife experiente pede a ajuda de um velho amigo: um médico legista.”

Com uma narrativa que embaralha passado e presente, A Autópsia é um terror potente que se revela calmamente conforme se desenrola. Conduzida pelos veteranos F. Murray Abraham e Glynn Turman, a história passeia por diferentes gêneros para manter o espectador atento na busca por pistas sobre o que está acontecendo.

Para não estragar as surpresas, digamos apenas que o episódio constrói um mistério sólido que desemboca em um clímax agoniante que pode ser difícil de assistir para aqueles que não são muito fãs de gore. Uma questão perfeitamente condizente com uma história intitulada “A Autópsia”.

Por Fora

Cartaz do episódio Por Fora de O Gabinete de Curiosidades de Guillermo Del Toro
Cartaz do episódio Por Fora

Direção de Ana Lily Amirpour
Roteiro de Haley Z. Boston
Sinopse: “Tentando se encaixar no trabalho, a esquisitona Stacey começa a usar um creme famoso, que provoca uma reação arrepiante e uma transformação perturbadora.”

Unida tematicamente a A Autópsia na exploração de horror corporal, Por Fora usa esse subgênero para tecer uma crítica nada sutil à indústria de beleza. Extrapolando problemas reais trazidos por padrões de beleza inatingíveis e a sordidez de quem lucra com eles, o capítulo faz uma homenagem aos Filmes B enquanto acompanha a degradação física e psicológica de sua protagonista.

A trama traz tantos pontos interessantes que chega a ser uma pena que o resultado não seja excepcional. Ao não decidir o foco, a história atira para todos os lados e acaba no meio do caminho entre o drama e a sátira. Ainda assim, é uma história agoniante abrilhantada pela atuação de Kate Micucci, que exprime a fragilidade necessária para que sua personagem não pareça uma caricatura.

Modelo de Pickman

Cartaz do episódio Modelo de Pickman de O Gabinete de Curiosidades de Guillermo Del Toro
Cartaz do episódio Modelo de Pickman

Direção de Keith Thomas
Roteiro de Lee Patterson
Sinopse: “Com suas obras de arte assustadoras, o introvertido Richard começa a alterar o senso de realidade do estudante Will.”

Primeira adaptação de H.P. Lovecraft presente na antologia, Modelo de Pickman é um mistério elegante e aterrador. Com base no famoso conto sobre obras amaldiçoadas, o capítulo é um banquete de imagens grotescas e aterradoras que dão o tom de fatalismo exigido.

Seu calcanhar de aquiles é a má distribuição de tempo, que impacta diretamente a narrativa. É claro que trazer o maior número de sustos possível vai agradar uma parte da audiência, mas é uma escolha que acaba inchando o capítulo e tornando abrupta a evolução na insanidade que se instaura.

Sonhos na Casa da Bruxa

Cartaz do episódio Sonhos Na Casa da Bruxa de O Gabinete de Curiosidades de Guillermo Del Toro
Cartaz do episódio Sonhos Na Casa da Bruxa

Direção de Catherine Hardwicke
Roteiro de Mika Watkins
Sinopse: “Anos após a morte da irmã gêmea, um pesquisador usa uma droga especial para entrar em um mundo misterioso e sombrio para tentar trazê-la de volta.”

Fechando a dobradinha de adaptações lovecraftianas, Sonhos na Casa da Bruxa traz um espetáculo gótico fortemente ancorado na performance de Rupert Grint. Ironicamente situado entre alguns signos de sua passagem por Harry Potter, o ator é o centro de uma história que cozinha a tensão lentamente até explodir em um clímax que abandona a sutileza em favor de uma correria barulhenta.

É uma história que encanta por sua atmosfera gótica e a curiosidade que desperta a respeito de suas mecânicas. Não marca um ponto alto da antologia ao mesmo tempo em que não decepciona, especialmente por ocasionalmente recorrer a um humor mórbido pouco visto no Gabinete.

A Inspeção

Cartaz do episódio A Inspeção de O Gabinete de Curiosidades de Guillermo Del Toro
Cartaz do episódio A Inspeção

Direção de Panos Cosmatos
Roteiro de Panos Cosmatos e Aaron Stewart-Ahn
Sinopse: “Um milionário recluso recebe quatro convidados em sua mansão para uma experiência inesquecível, que acaba virando uma noite de terror.”

A grande curiosidade desse gabinete é como uma história original foi capaz de traduzir melhor o conceito de horror cósmico do que duas adaptações diretas de Lovecraft. A Inspeção embrulha esse gênero na pulsante estética neon do final dos anos 1970 para mostrar que a insignificância humana perante o desconhecido é atemporal.

A condução de Panos Cosmatos pode até parecer lenta, mas é fundamental para construir a tese do chocante e barulhento clímax. Uma escolha que pode afastar os mais impacientes, mas que recompensa quem se deixar levar por essa alucinada viagem milimetricamente construída para deslumbrar e aterrorizar.

O Murmúrio

Cartaz do episódio O Murmúrio de O Gabinete de Curiosidades de Guillermo Del Toro
Cartaz do episódio O Murmúrio

Direção e roteiro de Jennifer Kent
Sinopse: “Depois de uma tragédia, os ornitólogos Nancy e Edgar se isolam em uma casa para estudar os pássaros. Mas a história do lugar é cheia de tristezas e terrores.”

O Murmúrio fecha O Gabinete de Curiosidades com chave de ouro. A direção de Jennifer Kent aproveita cada utensílio à sua disposição para criar uma história em que o horror serve a um potente drama sobre luto. Desde o isolamento dos personagens, passando pelo uso do som proposto pela profissão do casal, até o uso certeiro do sobrenatural elevam o capítulo a um dos mais memoráveis.

Tais elementos ganham vida graças às tocantes e realistas interpretações de Essie Davis (O Babadook) e Andrew Lincoln (The Walking Dead). A dupla dá um verdadeiro show na construção de uma relação delicada e cheia de camadas. Ponto central da trama, a dinâmica é sutil e grave na medida para que o foco no drama não desagrade mesmo quando deixa o horror em segundo plano. Um feito e tanto, considerando que é desse drama que surgem as fortes emoções que servem de combustível para os momentos mais doloridos da história.

Todos os episódios de O Gabinete de Curiosidades de Guillermo Del Toro estão disponíveis na Netflix.

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